por Magali do Nascimento Cunha/Carta Capital

Fábio Rodigues Pozzebom/Agência Brasil

A má-fé da senadora gaúcha no episódio da Al-Jazeera só alimenta o preconceito e o ódio em relação aos árabes e a quem pensa diferente

Antes de ser senadora, Ana Amélia foi jornalista… Huummm

Nos últimos dias, a senadora Ana Amélia Lemos, do PP do Rio Grande do Sul, chamou mais uma vez a atenção. Ao reagir a uma entrevista da também senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT, à tevê Al-Jazeera, declarou na tribuna do Senado preocupação com “essa convocação ao apoio dos países do mundo árabe [para libertar o ex-presidente Lula da prisão]”.

Ana Amélia acrescentou: Não teria “sido também um pedido para que o exército islâmico venha ao Brasil atuar aqui”, e sugeriu enquadrar Hoffmann na Lei de Segurança Nacional.

Críticos da postura de Ana Amélia apontaram sua ignorância em relação à Al-Jazeera e à tentativa de reduzir o mundo árabe a extremistas religiosos. Ignorância parece pouco diante da explícita ação de má-fé da senadora contra sua colega parlamentar.

Soa até ingênuo imaginar que Ana Amélia, uma jornalista e ex-diretora da RBS em Brasília, presidente do Grupo Parlamentar Brasil-Arábia Saudita criado pelo Senado, acredite que a Al-Jazeera seja um instrumento de árabes que formam um exército islâmico.

A senadora “jogou para a galera” e acendeu não só o sentimento antipetista de muita gente como o ódio contra os povos do Oriente Médio. Com isso, provocou inúmeras postagens em mídias sociais acusatórias a Gleisi Hoffmann e de intolerância contra árabes e islâmicos.

Como escrevi anteriormente neste espaço, notícias falsas se propagam assim, quando encontram apoiadores do conteúdo que não querem saber sobre a verdade, mas se preocupam apenas em divulgar o que creem que esta verdade deveria ser.

A atitude de Ana Amélia gerou ainda uma ação do deputado federal evangélico Major Olímpio, do PSL de São Paulo, que pediu à Procuradoria Geral da República a cassação do mandato de Gleisi e do registro do PT.

Sites de notícias gospel, por sua vez, deram amplo destaque ao pronunciamento de Ana Amélia. Chamadas como “Gleisi Hoffmann convoca árabes para se ‘juntarem à luta’ por libertação de Lula; Lei prevê cadeia” (Gospel Mais) e “Al Jazeera e o pedido de ‘apoio’ de Gleisi Hoffmann” (Gospel Prime) foram amplamente compartilhadas.

Uma das colunistas do Gospel Prime, portal apontado em matéria jornalística recente como um dos dez maiores produtores de notícias falsas no Brasil, publicou que a Al-Jazeera é “uma emissora de TV do Qatar, acusada de apoiar o terrorismo islâmico” e que “parte da imprensa brasileira, cumprindo seu papel oficioso de ‘desinformação’  fez questão de anunciar que a TV Al-Jazeera não tem ligação com grupos terroristas e os esquerdistas passaram a divulgar a nota de repúdio do Instituto de Cultura Árabe”.

O texto termina com a extraordinária pergunta: “Se Lula não teve capacidade de mobilizar o MST, o MTST e outros movimentos para libertá-lo do encarceramento, teria sucesso com jihadistas estrangeiros?”.

É mais uma amostra do momento grave que vivemos no Brasil, e também em outras partes do mundo, em que nossa capacidade de comunicação tão ampliada com o universo digital tornou-se um instrumento para a promoção de intolerância e hostilidade.

Ana Amélia, Major Olímpio e os sites gospel sabem da predisposição de muita gente para rejeitar e odiar o diferente e fazem uso desse comportamento.

Temos, claro, que reconhecer o fato de vivermos num tempo de muito individualismo e desconfiança. Somos levados a conviver apenas com aqueles que são como nós e nos fazem sentir bem. Criamos “condomínios relacionais”. Somos guiados por máximas do tipo “com quem vale e com quem não vale a pena conviver”.

Como consequência, não só gente de culturas diferentes são desprezadas, mas muitos de nós acabam se tornando forasteiros, estrangeiros em sua própria terra… Moradores de favelas, sem-terra, indígenas, mulheres sozinhas, dependentes químicos, homossexuais, idosos, sem-teto, moradores de rua, negros, desempregados, portadores de HIV, pessoas com deficiência, quem vive diferentes formas de cultivar a fé, entre outros.

A questão se agrava quando as religiões, que deveriam ser as primeiras a viver a acolhida e a inclusão, acabam por reproduzir esta postura de hostilidade-separação-seleção. Entre cristãos, são comuns interpretações de quem conta e quem não conta para Deus: pregações e canções que demarcam distinções entre “filhos de Deus” e “criaturas”.

Quem é e quem não é vencedor, quem tem a bênção, quem não tem… São elas que embasam práticas como aquelas do Major Olímpio e dos sites de notícias evangélicas.

É sempre possível ter esperança. Ainda conhecemos e vivemos histórias de gente que se abre ao outro, que acolhe e que pratica gentileza. Quem lê este texto deve se lembrar de várias.

Há grupos cristãos que ressaltam as muitas narrativas nos textos da Bíblia, e, entre elas, aquelas que contam que Jesus se relacionou, conviveu e comeu com muitos considerados “estranhos”, alguns de outras culturas e religiões. Por isso, disse aos seus discípulos: “Todas as vezes que fizerem isso (acolher o estranho), a mim estarão fazendo”.

Portanto, neutralizemos a ação das Anas Amélias, dos Majores Olímpios e dos sites gospel com práticas do nosso cotidiano, a começar nas formas humanizadas e transparentes de comunicação, especialmente com e sobre quem está logo ali.