A nomeação de John Kerry como chefe da política climática americana confirma que o presidente eleito Joe Biden vai tornar o assunto prioridade máxima de sua gestão. Foi justamente o antigo secretário de Estado de Barack Obama que assinou em 2016, em nome dos Estados Unidos, o Acordo Climático de Paris.

“Os EUA em breve terão um governo que tratará a crise climática como uma ameaça urgente à segurança nacional”, escreveu Kerry no Twitter. “Será uma honra trabalhar com nossos aliados e parceiros, ao lado de jovens líderes em ascensão no movimento climático, para enfrentar a crise climática com a seriedade e a urgência que ela merece.”

O novo cargo de Enviado Presidencial Especial para o Clima será inserido no Conselho Nacional de Segurança – o principal fórum de assessores presidenciais e funcionários do gabinete sobre segurança nacional e política externa da Casa Branca.

“O planeta em primeiro lugar”

A nomeação de Kerry foi saudada tanto por ativistas do clima quanto por cientistas. “Após quatro anos à margem, os EUA terão finalmente um representante no cenário mundial que compreende a gravidade da crise climática e tem a experiência e a habilidade de trabalhar com a comunidade global para ajudar a enfrentá-la”, afirma Rachel Cleetus, diretora de políticas para o clima e energia da Union of Concerned Scientists (união de cientistas preocupados).

“A nomeação de John Kerry é uma notícia muito boa para o clima. Não é mais a América em primeiro lugar, mas o planeta em primeiro lugar”, diz, por sua vez, Niklas Höhne, do Instituto NewClimate, sediado na Alemanha.

Kerry, de 76 anos, tem experiência como diplomata do clima. Como secretário de Estado de Obama, ele ajudou a renegociar o Protocolo de Kyoto e foi um arquiteto-chave do Acordo Climático de Paris. O democrata não é considerado um ambientalista radical, o que é vantajoso, de acordo com Höhne.

“Eu acho que ele é a pessoa ideal para o trabalho porque a política climática internacional requer busca por consenso. A experiência de Kerry é um ganho imenso aqui – um bem que ninguém mais tem, exceto talvez Al Gore”, comenta Höhne.

Esse sentimento foi ecoado por muitos, incluindo o próprio ex-candidato presidencial Gore, que saudou a nomeação de Kerry como “uma escolha soberba”.

A nova voz dos EUA

Segundo Tim Profeta, diretor do Instituto de Políticas Ambientais Nicholas, da Universidade Duke, nos EUA, embora os contornos exatos do papel e autoridade de Kerry ainda não estejam claros, sua principal tarefa será o estabelecimento da voz americana na comunidade global dedicada a enfrentar a mudança climática.

“A capacidade dele de cumprir a promessa de uma ação real dos EUA a uma comunidade internacional cética é provavelmente seu maior desafio”, comenta Profeta.

Entretanto, para Thorfinn Stainforth, analista de políticas do Instituto de Políticas Ambientais Europeias (IEEP), o sucesso geral de Kerry como enviado climático pode muito bem depender da “vontade dos EUA de comprometer o financiamento internacional do clima e a redução dos subsídios aos combustíveis fósseis”.

“Isso será mais difícil politicamente do que as aberturas diplomáticas e exigirá vontade política dentro dos EUA”, acrescenta Stainforth.

Esta é a razão mais provável pela qual a posição de Kerry deverá ser compensada por um coordenador de alto nível de política climática da Casa Branca. Este deve se concentrar no lado doméstico da coisa, enquanto Kerry olha para o cenário internacional. Um nome para essa posição-chave deverá ser confirmado em dezembro.

Muitos ambientalistas defendem que o cargo vá para o governador de Washington, Jay Inslee, que defende eliminar gradualmente o uso do carvão até 2030 e tornar os EUA neutros em carbono já em 2045. Entretanto, a mídia americana também apresentou como possíveis candidatos o secretário de Energia, secretário do Interior e o chefe da Agência de Proteção Ambiental (EPA).

Eliminando o primeiro obstáculo

Em termos de política climática concreta, o primeiro passo em 2021 será a reentrada no Acordo Climático de Paris poucos meses depois que os EUA se tornaram o primeiro país a deixá-lo, sob o governo Donald Trump. O processo de reingressar é uma mera formalidade: Biden escreve uma carta ao secretário-geral das Nações Unidas, e 30 dias depois os EUA estão de volta a bordo.

John Kerry na Antártida, em 2016
John Kerry na Antártida, em 2016

Além de aderir novamente ao acordo, Biden prometeu a neutralidade climática até 2050. “Um passo muito importante na direção certa”, afirma Höhne. Porque, segundo ele, com os EUA, a China e a União Europeia caminhando agora para emissões zero, “será difícil para outros países não embarcarem”.

Mas 2050 é a meta a longo prazo – “o verdadeiro desafio para os EUA está em determinar a nova meta de redução de emissões que precisa ser submetida sob o acordo de proteção climática para 2030”, afirma Höhne.

Em vez de negociar uma nova meta, Biden poderia simplesmente adotar a meta de 2030 estabelecida pelo governo Obama. Mas a maioria dos especialistas em clima concorda que isso não é mais suficiente. “Teria que ser mais ambicioso para atingir a neutralidade climática até 2050”, acrescenta Höhne.

Congresso dividido, um desafio

Cerca de cem normas e regulamentos ambientais foram revogados pelo governo Trump. A implementação de novas políticas em nível nacional para reverter isso será difícil e muito depende de Biden ganhar a maioria no Senado – o que não será decidido até janeiro.

“O maior desafio é que temos um Congresso muito dividido que até agora não demonstrou um compromisso com ações climáticas ambiciosas. Sem a ação do Congresso, há limites para o que o governo Biden pode oferecer no cenário mundial”, opina Cleetus.

Se o Partido Democrata não ganhar a maioria no Senado, é possível que muitas das novas medidas acabem nos tribunais.

Justiça ambiental

Sob o governo Trump, a Agência de Proteção Ambiental atingiu o menor número de casos de poluição encaminhados para processo criminal em 30 anos, de acordo com os dados do Departamento de Justiça.

Joe Biden se comprometeu a direcionar a agência e o Departamento de Justiça para perseguir tais casos de forma rígida no futuro, responsabilizando os executivos das empresas, incluindo a pena de prisão, quando merecido.

Ele também anunciou planos para estabelecer uma Divisão de Justiça Ambiental e Climática dentro do Departamento de Justiça para complementar o trabalho da Comissão de Meio Ambiente e Recursos Naturais.

“Este é um movimento muito significativo, um pedido de longa data dos defensores da justiça climática. Não há dúvida que as comunidades de baixa renda nos EUA enfrentam um fardo desproporcional da poluição e também dos impactos climáticos”, afirma Cleetus.

Além de ajudar os afetados pela mudança climática e a poluição, este órgão também ajudará os cidadãos atingidos pelo processo de transformação necessário para alcançar a neutralidade de carbono até 2050.

“Sempre há perdedores numa transformação. As empresas vão à falência porque seu modelo de negócios não funciona mais. Nas regiões carboníferas, muitas pessoas perderão empregos. Montar uma comissão para cuidar exatamente disso é um passo muito importante nessa transformação”, diz Höhne. “Sem apoiar essas regiões, a transformação não pode ser feita.”

 

Fonte: Deutsche Welle (DW)