A médica gaúcha Nair Amaral, 52 anos, especialista em cirurgia geral, trabalha há quase três anos em Lisboa em hospitais do sistema público de saúde. Ela atua na linha de frente de atendimento a pacientes afetados pela Covid-19, em uma unidade de urgência respiratória. Portugal é o país que mais tem registrado novos casos da infecção viral por cada milhão de habitantes e aquele que, em escala mundial, apresenta a maior taxa de contágios, segundo dados da Universidade de Oxford.

Os hospitais portugueses estão à beira do colapso. Por falta de leitos, o Ministério da Saúde já estuda a transferência de pacientes para o exterior. Na avaliação da especialista brasileira, a variante britânica do vírus, mais contagiosa, provocou esse “boom” das infecções em Portugal.

Nair Amaral relata que já não conta mais o tempo de trabalho, em média 60 horas por semana. E quando volta para casa, não consegue dormir, pensando em seus pacientes. Em Lisboa e outras localidades do país, as ambulâncias formam longas filas nas entradas dos prontos-socorros até conseguir desembarcar os pacientes.

“Desde o início do mês, houve um aumento no número de doentes buscando os serviços de urgência, aumento no número de doentes graves, aumento de internados em enfermarias e em cuidados intensivos”, relata. “Muito mais jovens positivos, mas não mais jovens saudáveis graves”, detalha. Segundo a médica gaúcha, o que está ocorrendo neste inverno no hemisfério norte já era previsível e foi a “tempestade perfeita”.

“No inverno, os ambientes são menos arejados, as pessoas estão confinadas em casa, com portas e janelas fechadas; o ar dos lugares fica mais saturado e o vírus está com maior capacidade de contágio por causa da variante”, afirma. “Este é meu terceiro inverno em Portugal e os outros também foram caóticos”, recorda.

“Nós trabalhávamos no limite do limite, com várias urgências lotadas e situações críticas. Todo inverno temos doentes respiratórios em grande quantidade, muitas mortes por pneumonias e insuficiência respiratória grave, em geral idosos. Este grupo já era esperado para lotar as urgências. Somou-se a esse já conhecido grupo os doentes graves com Covid-19”, explica Nair Amaral. “Os doentes das outras doenças, que estão sem tratamento e sem atendimento há quase um ano, estão muito mais vulneráveis e têm suas patologias crônicas muito agravadas”, ressalta.

Tem sido comum na pandemia buscar justificativas e culpados para um tal drama sanitário. O agravamento da crise em Portugal foi atribuído aos “excessos” que os portugueses teriam cometido durante as festas de fim de ano, principalmente no Natal. Mas a médica brasileira, que recebe os pacientes em urgência respiratória, observa a situação de outro ângulo e prefere não culpabilizar os doentes.

“O que eu vejo ao meu redor não são pessoas de mau comportamento, pessoas que não cumprem as medidas [de prevenção], jovens que andaram em festas ou em baladas, universitários, jovens de escolas. O que nós vemos são pessoas de meia-idade e idosos mais frágeis, pessoas de idades muito avançadas – nonagenários, centenários e octagenários –, em sua massiva maioria com comorbidades. Alguns de meia-idade, entre 50 e 70 anos, mas são a minoria. Eu não tenho na minha vivência, e compartilho isso com colegas, pessoas que não cumpriram as medidas. Muitos estavam isolados, quietos em casa”, descreve a médica.

Apesar dessa tensão nas enfermarias e UTIs, ela não enfrenta falta de material no hospital onde trabalha. Sobre o que aconteceu em Manaus, onde faltou oxigênio para os doentes, Nair Amaral acredita se tratar mais de “um caso de desorganização, não previsão, não preparação, desvio de verbas, má administração do Estado e/ou do município do que falta de insumos”. “Oxigênio não é algo difícil ou caro para se obter. É um insumo comum e que se produz normalmente no Brasil e em Portugal”, pondera.

“Todos teremos contato com essa doença”

A especialista em cirurgia tem uma opinião moderada em relação às cobranças feitas pela opinião pública em relação às autoridades que enfrentam esta pandemia excepcional.

“Não acho que os governos possam fazer muito mais do que já fazem. Há uma história natural do comportamento dos vírus em geral, das mutações e variantes, do contágio. É uma doença infectocontagiosa respiratória e sabemos que, com o tempo, todos teremos, com mais ou menos sintomas, alguns assintomáticos, outros casos mais graves e fatais. Esse vírus chegou para ficar. Com o tempo, desenvolveremos imunidade natural, faremos imunização com vacinas e conviveremos com ele. Até lá, muitas vidas serão ceifadas”, diz, em tom realista, com o conhecimento científico de quem lida no cotidiano com infecções pulmonares.

“Portugal passa por algo que todos os países vão passar em menor ou maior grau”, estima a gaúcha. “Essa doença não tem fronteiras, eu sempre digo que é uma fila única: uns estão na frente, outros vêm depois, mas todos teremos contato com essa doença. Em algumas semanas, vai ter esse ‘boom’ em outras regiões do mundo”, prevê.

A cirurgiã fala de seu trabalho com tenacidade e dedicação. “Gosto muito do que faço. Acho que é uma honra poder estar em atividade, poder estar servindo pessoas. Eu poderia estar servindo no Brasil, por acaso estava aqui”, diz com emoção na voz.

“É uma experiência única, muito gratificante e muito exaustiva, muito exaustiva. É um cansaço crônico, que não adianta ir para casa para dormir. A gente não se recupera com o sono. Muitas vezes nós dormimos e sonhamos com os pacientes. A gente acorda e se pergunta: será que eu não me lembrei de pedir tal exame, lembrei de dizer ao meu colega que aquele doente tinha tal coisa? Depois a gente volta a dormir e acorda cansado. É como se estivesse em um filme de ação (…) e você não sai daquele cenário.”

 

Fonte: Brasil 247