Por André Uzeda/Correio da Bahia

A coluna hoje começa com um pedido de desculpas. Ao invés de tratar de um tema sobre nossa querida Bahia, como geralmente fazemos, vamos falar de Feira de Santana, a Princesinha do Sertão.

Antes que você me xingue (já deve ter feito) e me acuse de ser um asno em matéria de geografia, explico: estas linhas escritas estão recheadas de ironia. O soteropolitano, na maioria das vezes, acha que a Bahia é só Salvador. É um soteropolicentrismo ostensivo, como se o estado bastasse em uma única cidade – os mais esclarecidos, no máximo, estendem os limites até o Recôncavo.

Eu entendo bem desse sentimento porque também sou uma criatura nascida em Salvador e, quase sempre, cometo estes reducionismos fajutos. Mas, em nome da redenção e por todas as piadas infames sobre “tabaréus” e similares, trago esse assunto aqui para provar que Feira de Santana, na verdade, tem até mais condições de reivindicar a condição de sede administrativa do estado do que a atual capital.

Sei que nesse exato momento rumei pedra numa casa de maribondo. Não ligo. Meu pesticida é a verdade – “e ela vos libertará” (João 8:32). Acompanhe aqui comigo este belo raciocínio: as cores azul, vermelho e branco da bandeira da Bahia primeiro apareceram na Revolta dos Alfaiates (1798), certo?

Esse levante, composto por negros, mulatos, escravos e profissionais liberais, tinha como clara inspiração a Revolução Francesa (1789), que por sua vez tinha como lema a “igualdade, liberdade e fraternidade”, além das cores azul, vermelho e branco.

Ou seja, repare agora, se a bandeira da Bahia é inspirada na francesa, qual cidade teria mais condições de ser a capital do estado que não uma que se parecesse tanto com Paris?

Cherie, mon amour (em tradução livre: receba, sacana). Nenhuma cidade no Brasil tem mais elementos em comum com Paris que Feira de Santana. Eu fiz uma lista com 14 motivos e posso provar que a Cidade da Luz e a Princesinha do Sertão são irmãs gêmeas separadas no berço pelo Oceano Atlântico e distantes, apenas, 7.907 km uma da outra (o que corresponde a 17h40 minutos em voo direto).

E não venha pra cima de muá, que agora apresento a lista:

1 – Valeu, Champs!

Se Paris tem a Champs-Elysées com suas lojas luxuosas, arborização e um dos metros quadrados mais valorizados de todo o mundo…

…Feira de Santana não fica atrás com a gloriosa Avenida Getúlio Vargas. A alameda feirense tem muitas árvores também e, assim como a prima europeia, é uma longa reta que corta a cidade, servindo de referência para os milhões de turistas que visitam a cidade o ano todo.

2 – Senhor nos Passos de Notre-Dame

A recém destruída igreja de Notre-Dame, que tanta gente postou foto recentemente no instagram depois do incêndio que atingiu parte de estrutura, é montada em estilo gótico e, depois de um longo período de construção, foi finalmente finalizada em 1163, com projeto iniciado anos antes pelo Rei Luís VII (guarde esse nome).

A igreja Senhor dos Passos, que fica ali na Getúlio Vargas, tem um estilo muito parecido. As duas são góticas (embora não usem preto e nem ouçam músicas deprimidas) com torres muito altas e com a antena apontando para o céu. A Igreja Senhor dos Passos foi claramente inspirada na primogênita francesa.

3 – Sena x Subaé

O Sena é um rio que nasce no norte da França, corta Paris e deságua lá no Canal da Mancha, onde recebe as águas do Oceano Atlântico.

Se Paris tem Sena, Feira não larga atrás nesse grid hidrográfico. O Subaé nasce ali mesmo em Feira de Santana, passa por São Gonçalo dos Campos e Santo Amaro da Purificação e deságua na Baía de Todos os Santos, banhada pelas águas do Atlântico.

Não é possível afirmar, mas entre uma corrente marítima e outra, é bem possível que as águas do Sena e do Subaé se misturem em algum momento oceano afora.

 

 

4 – Caixa D’água do Tomba

Esse é um capítulo muito especial da história de Feira de Santana. Todo feirense conhece a Caixa D’água do Tomba e tem muito apreço por ela. A Caixa D’água do Tomba é um monumento que representa a cidade, assim como a Torre Eiffel, construída no século XIX com seus 324 metros de altura, é uma referência da França para o mundo inteiro.

Se a Torre Eiffel já serviu de inspiração para souvenirs, postais e retratos no mundo todo, a Caixa D’água do Tomba foi o molde para uma tatuagem, que resultou neste áudio hilário! Escute:

5 – Coincidências nas datas

Lembra de Luís VII que falei lá em cima? Pois bem, ele que foi responsável pelo projeto de construção da Catedral de Notre-Dame, morreu no dia 18 de setembro de 1.120.

Apenas alguns aninhos mais tarde (apenas 712 anos), também no dia 18 de setembro, a cidade de Feira de Santana se emancipou nesta data se tornando uma cidade com sede administrativa própria e, anos mais tarde, a mais desenvolvida do interior da Bahia.

6 – O astrólogo

Raul Seixas tinha um conhecimento ancestral (nasceu há 10 mil anos atrás) e não tinha nada nesse mundo que ele não soubesse demais. Tanto é que ele foi o primeiro a reconhecer essa relação fraterna entre as duas cidades. Apesar da distância de 7 mil quilômetros entre ambas, ele tratou de juntar as duas num mesmo verso, na música “Quando acabar o maluco Sou Eu”.

Confira o trecho:

Eu sou louco, mas sou feliz

Muito mais louco é quem me diz

Eu sou dono, dono do meu nariz

Em Feira de Santana ou mesmo em Paris

Veja o vídeo completo da música

7 – Um por todos, todos por um

Alguns bairros de Feira são vezeiros na infestação de muriçoca. Pra resolver a questão, alguns moradores usam até três mosqueteiros como proteção. Mal sabem, mas, ao fazerem isso, homenageiam um célebre autor francês.

Alexandre Dumas é o autor da obra “Os três mosqueteiros”, onde narra as aventuras de Athos, Porthos e Aramis  D’Artagnane (Dumas era ruim de matemática e, na verdade, os três mosqueteiros eram quatro).

É ou não é uma bela homenagem literária?

8 – Micareta de Feira

A micareta de Feira, que termina hoje depois de quatro dias de putaria e chibança, é a mais antiga em atividade no Brasil. Começou em 1937 e já dura 82 anos.

A palavra micareta deriva de uma festa francesa, a Mi-carême. A festa francesa é comemorada quando a Quaresma chega à metade (ou seja, no vigésimo dos 40 dias antes da Páscoa), A festa era uma espécie de Carnaval fora de época, exatamente como se popularizou no Brasil anos depois.

9 – Feriados em julho

Tanto Feira de Santana quanto Paris comemoram o principal feriado em julho. Na capital francesa, o dia 14 é lembrado como a tomada da Bastilha (uma antiga prisão que simbolizava o poder dos reis absolutistas). Essa data representa também o início da Revolução Francesa, que viria a mudar a concepção do estado e a aproximação da burguesia ao poder.

Em Feira, o dia de celebração é o 26 de julho. Data que se comemora Nossa Senhora da Santa’Ana, mãe de Maria e avó de Jesus Cristo. Ela é a padroeira de Feira e dá nome a cidade. Por sinal, as festas em homenagem a Sant’Ana são muito famosas na França.

10 – As mulheres

 

Tanto Paris quanto Feira têm suas mulheres guerreiras que representam ideias de liberdade, luta, revolução e força.

Joana D’Arc nasceu em 1412 e morreu queimada pelos ingleses em 1431. Viveu apenas 19 anos, mas o suficiente para ajudar o exército francês com suas visões divinas durante a triunfante batalha do Cerco de Orleães, durante a Guerra dos 100 anos. Além das visões, ela se vestia com armadura de homem e ia para os campos de batalha.

Joana D’arc foi capturada, julgada como bruxa e posta numa fogueira. Em 1920, seria canonizada santa pelo Papa Bento XV.

Maria Quitéria nasceu em Feira de Santana em 27 de julho de 1792 (um dia depois da padroeira de Sant’Ana). Ela combateu na Guerra da Independência, se tornando um símbolo nacional pelas lutas na expulsão dos portugueses nas batalhas do 2 de julho, aqui na Bahia.

Maria Quitéria se vestia de homem e ia para os combates usando sua bravura, inteligência e refinada estratégia militar. Após a Guerra, foi promovida ao posto de cadete da Bahia e condecorada com a Imperial Ordem do Cruzeiro (maior honraria do Império), pelo próprio Dom Pedro I.

Em 1996 o Estado brasileiro atribuiu-lhe o título de patrona do Exército Brasileiro e, segundo texto da Wikipédia, “seus feitos são recorrentemente comparados ao da mártir Joana d’Arc”.

Maria Quitéria morreu em 1853, completamente cega e no anonimato. Apesar de não ter sido canonizada, igual à correlata francesa, seus restos mortais estão na Igreja da Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana, no bairro de Nazaré, aqui em Salvador.

11 – Príncipe e Princesa

Tanto Feira como Paris tem estádios de futebol homenageando a monarquia. Um dos mais famosos de Paris (sediou as Copas do Mundo de 1938 e 1998) é o Parc des Princes (Parque dos Príncipes, em bom português) – atualmente muito usado pelo PSG do craque brasileiro Neymar. Apesar de um dos mais antigos do país não foi palco da final da Copa de 1998, quando o Brasil levou uma sapecada de 3 a 0 para a França de Zidane.

Em Feira, tem o Joia da Princesa, inaugurado em 1953. O Joia, durante muito tempo, teve um dos gramados mais bem cuidados do país. E, melhor que o Parc des Princes, que ficou de fora da final da Copa do Mundo, o estádio feirense sediou uma das finais do Baianão 2019: o empate em 1 a 1 entre Bahia de Feira e Bahia.

12 – Prefeito com nome francês

Essa é uma coincidência que não deixa dúvidas. O atual prefeito de Feira, Colbert Martins (MDB) tem nome de francês.

É bem possível que seu nome seja uma referência a Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), o brilhante ministro da economia de Luís XIV. Ele teve importância no desenvolvimento do mercantilismo na França e seu período como chefe de estado ficou conhecido como colbertismo.

13 – Júnior Baiano

O último (é possível também que seja o único. Não consegui levantar com precisão) jogador nascido em Feira que disputou uma Copa do Mundo foi o zagueirão Júnior Baiano.

Uma geleia francesa de presente pra quem acertar qual foi a Copa que ele jogou.

Resposta: Copa de 1998, disputada na França

14 – O brega

Um dos pontos mais famosos de Feira de Santana é o brega de Alaíde. Uma respeitada casa de família, no bairro Santo Antônio dos Prazeres, no qual distintos senhores vão lá jogar conversa fora, se distrair e interagir depois de uma árdua jornada de trabalho.

Construído em 1889, o Moulin Rouge (Moinho de Vento Vermelho) foi também, assim como o brega de Alaíde, uma das casas de saliências mais famosas do mundo. Virou símbolo da noite boêmia parisiense com charme, poesia e belas mulheres. Foi até tema de um musical premiado pelo Oscar (interpretado por Nicole Kidman e Ewan McGregor). O brega de Alaíde também aguarda seu momento para despontar nas telonas.

Os argumentos são irrefutáveis. Feira é a cidade mais parisiense do Brasil e Paris a mais feirense entre os municípios do mundo. Muitas das comparações feitas acima (as piores, sobretudo) partiram das cabeças de Rafael Rodrigues, José Marques e João Gabriel Galdea. Agora é só fazer a requisição para trocar a capital da Bahia urgentemente.

Merci, mon chéri.