Sem certificado do Corpo de Bombeiros, Flamengo já havia sido denunciado pelo Ministério Público por condições precárias do alojamento que pegou fogo

Foto: Carl de Souza-AFP

Por Breiller Pires/ElPais

O incêndio no alojamento do Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo, que resultou em dez jogadores mortos e três feridos na manhã desta sexta-feira, é a maior tragédia já vivida pelo futebol carioca, mas também um acontecimento emblemático. A tragédia no clube mais rico do país, que tem orçamento anual de 750 milhões de reais e investiu mais de 100 milhões em contratações na última janela de transferências, exibe, até agora, elementos que mostram como o Flamengo não estava em dia com as exigências legais. Também liga o sinal de alerta sobre as condições dos jogadores mantidos em categorias de base, sobretudo em equipes menores – ou nas mais de 700 filiadas à Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Segundo o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil do Rio de Janeiro, as instalações rubro-negras atingidas pelas chamas não dispunham do Certificado de Aprovação, que atesta o cumprimento de normas de segurança previstas pela legislação. O local, que passou por reforma de 23 milhões de reais e inaugurou um novo módulo para jogadores do time principal no fim do ano passado, estava em processo de regularização de documentos para obter o certificado. Por sua vez, a prefeitura do Rio informou que a área incendiada, descrita pelo clube como estacionamento no último projeto remetido às autoridades, não constava como edificação de dormitório no licenciamento municipal vigente nem tinha alvará de funcionamento.

Enquanto o módulo destinado aos atletas das categorias de base recebia ajustes finais para acomodá-los, garotos com idades entre 14 e 17 anos ficavam alojados em uma estrutura provisória de contêineres, onde o fogo teria começado. Peritos avaliam as causas do incêndio, mas, inicialmente, trabalham com a hipótese de curto-circuito no ar condicionado de um dos quartos. De acordo com Felipe Cardoso, de 15 anos, que havia chegado à base do Flamengo esta semana, contratado do Santos, o incêndio teria se originado no aparelho de seu dormitório. Em relato publicado nas redes sociais, ele disse que conseguiu correr e escapar da fumaça antes de as chamas se alastrarem.

Embora o Flamengo seja um dos 42 clubes, em meio aos mais de 700 filiados à CBF, que contam com o Certificado de Clube Formador, atribuído às equipes que cumprem requisitos básicos para trabalhar com jovens atletas, não há um mecanismo de fiscalização do cumprimento das regras após a certificação, que, na maioria dos casos, vale por dois anos. “Se uma tragédia dessa magnitude acontece no Flamengo, imagine o risco corrido por crianças e adolescentes invisibilizados nos clubes pequenos?”, questiona Ana Christina Brito Lopes, especialista em direitos da infância no esporte.

Em 2006, Brito Lopes coordenou trabalhos no Conselho Estadual da Criança e do Adolescente no Rio para criar uma resolução de proteção integral aos direitos infantojuvenis em instalações esportivas. Apesar de estabelecer responsabilidades de órgãos públicos pela fiscalização dos clubes que abrigam jovens em sua estrutura, as diretrizes da resolução, segundo ela, acabaram abandonadas pelo sistema de garantia de direitos no Estado. “Se o Estatuto da Criança e do Adolescente fosse realmente cumprido, garotos não ficariam alojados nos clubes, afastados do convívio familiar e submetidos a treinamentos de alta intensidade, incompatíveis com a idade de formação”, diz ela.

Entre as vítimas do incêndio, a maior parte é de jogadores de outros Estados que viviam no alojamento. A tragédia poderia ter sido ainda maior, já que, no dia anterior, o clube cancelou o treinamento previsto para esta sexta-feira por causa dos temporais que castigam o Rio de Janeiro. Com isso, garotos residentes na capital fluminense foram dormir em casa. O alojamento tinha capacidade para 60 atletas. Por determinação do Ministério Público, clubes só podem incorporar à base ou alojar jogadores distantes da família a partir dos 14 anos.

Na próxima semana, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público Estadual (MPE) do Rio de Janeiro pretendem ingressar com medida cautelar a fim de garantir que todas as famílias das vítimas no incêndio sejam indenizadas pelo Flamengo. De acordo com o MPT, que criou uma força-tarefa para apurar o caso, não é necessária a comprovação de dolo ou culpa pelo incêndio para que o clube banque indenizações, já que as vítimas estavam em suas dependências. “Trata-se de responsabilidade objetiva”, afirma Danielle Cramer, procuradora do MPT e coordenadora da força-tarefa.

Em 2012, a morte de Wendel Junior Venâncio da Silva, de 14 anos, durante um teste nas categorias de base do Vasco motivou ações de dano moral coletivo movidas por MPT e MPE contra o clube carioca, que ainda recorre de condenação no processo em instâncias superiores. A equipe não contava com médicos de prontidão no local do teste e, segundo vistoria realizada nas instalações, abrigava garotos em dormitórios precários. Desde então, o MPT tenta assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os grandes clubes do Rio para garantir melhores condições a crianças e adolescentes na base, mas nenhum deles concordou com os termos estipulados pelo órgão. “Houve avanços, mas as estruturas dos clubes na base ainda estão longe do ideal”, afirma Cramer. Segundo a prefeitura, os CTs de Vasco e Fluminense também não têm alvará de funcionamento e deverão ser fiscalizados nos próximos dias.

As principais exigências do MPT são a concessão de pelo menos quatro passagens por ano para atletas de outros Estados visitarem suas famílias, corpo técnico multidisciplinar, como assistentes pedagógicos para acompanhamento dos garotos, e a formalização de todos os vínculos de trabalho com integrantes das categorias de base. Mesmo cientes das obrigações, clubes acabam driblando as normas para não correr o risco de perder jovens talentos. Jorge Eduardo, lateral-esquerdo de 15 anos que morreu no incêndio, por exemplo, foi incorporado à base do Flamengo aos 12 e morou na casa de amigos até completar os 14 exigidos para viver no alojamento.

Duas das vítimas estariam em período de teste, um deles Gedson Santos, 14, que havia chegado ao Ninho do Urubu apenas dois dias antes da tragédia – o clube diz ter contratos de formação com todas as vítimas. “Vamos investigar como eram esses vínculos”, afirma a coordenadora da força-tarefa do MPT. Desde 2015, transcorre uma ação civil pública do MPE para regulamentar as peneiras nas categorias de base dos clubes do Rio após o órgão constatar que muitos atletas passavam mais de um mês em teste, sem nenhum tipo de contrato firmado com as equipes. O objetivo é estabelecer um tempo máximo para os períodos de teste e assegurar que não haja exploração do trabalho por clubes formadores. Na mesma ação, o Comissariado de Justiça da Infância e Juventude denuncia que as “precárias condições oferecidas pelo Clube de Regatas do Flamengo a seus atletas são inferiores até mesmo àquelas ofertadas aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de semiliberdade em unidades do Departamento Geral de Ações Educativas (Degase), o que revela o absurdo da situação”. O documento ainda aponta que vários adolescentes permaneciam no centro de treinamento sem autorização formal dos pais.

“Sem a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes, o futebol brasileiro esconde tragédias anunciadas. A fiscalização nos espaços de formação precisa ser mais efetiva”, afirma Ana Christina Brito Lopes. A CBF e a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj), que suspendeu as semifinais da Taça Guanabara marcadas para o fim de semana, divulgaram nota de pesar sobre a tragédia no Ninho do Urubu. O presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, afirmou em um breve pronunciamento que o clube prestará auxílio a todas as famílias das vítimas. A equipe criou um gabinete de crise para tratar do caso.

A Prefeitura do Rio e a Polícia Civil abriram investigações com intuito de apurar as responsabilidades pelo incêndio, enquanto a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, diz ter acionado a Secretaria da Criança e do Adolescente “para que possamos agir de forma preventiva de modo a evitar novos incidentes como este que aconteceu no CT do Flamengo” e prometeu tomar providências “para que as famílias desses jovens não fiquem sem assistência”.

Desconsolado, em frente à estrutura do centro de treinamento que pegou fogo, Sebastião Rodrigues, tio de Samuel Thomas Rosa, 15, lateral-direito morto no incêndio, fez um desabafo exigindo que a tragédia não seja tratada como acidente. “Um clube como o Flamengo não pode colocar crianças pra dormir dentro de contêiner. Deveria ter um cuidado especial com os meninos. Essa tragédia poderia ter sido evitada.”

Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/08/deportes/1549656296_061699.html