Jair Bolsonaro rompeu com seu titular da Saúde. Mas o médico segue à frente da pasta – segundo observadores, porque Bolsonaro precisa dele como bode expiatório do provável desastre do coronavírus no país.

Suas gavetas já estavam limpas antes que ele se dirigisse à reunião ministerial convocada de supresa, segundo descreveu Luiz Henrique Mandetta na segunda-feira da semana passada (06/04), quando se dirigiu à imprensa aparentando cansaço.

Mas, ao contrário do que chegou a ser noticiado naquele dia sobre uma possível demissão, o presidente Jair Bolsonaro manteve o ministro da Saúde, de 55 anos, no cargo. “Nós vamos continuar”, disse Mandetta. “Médico não abandona paciente.”

Bolsonaro, por seu lado, aparentava desgaste; segundo bastidores na imprensa, ele não teve coragem de demitir seu ministro mais popular.

Desde o início de março, quando o Brasil entrou no compasso do coronavírus, os dois protagonizam uma discórdia pública. Exatamente como a maior parte dos prefeitos e governadores do país, o ortopedista pediátrico Mandetta segue as recomendações de distanciamento social da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já Bolsonaro considera as restrições à circulação um suicídio econômico. Além disso, promove o medicamento antimalárico cloroquina, enquanto Mandetta alerta contra os efeitos colaterais do remédio e prefere esperar por testes que comprovem sua eficácia.

Segundo Bolsonaro, alguns membros do governo estariam se comportando como “estrelas” – o que o mandatário não deverá tolerar por muito tempo. “Ninguém se esqueça que o presidente sou eu”, fulminou Bolsonaro.

Mas, por enquanto, Mandetta continua no cargo – entre outros por possuir boas conexões nos círculos políticos em Brasília. Ele vem de uma família influente do Mato Grosso do Sul.

Assim como o pai, que também foi ortopedista, Mandetta abraçou a carreira de médico antes de ingressar na política. Após os estudos, atuou como médico no Exército, depois como presidente da Unimed em Campo Grande, sua cidade natal. Seu primo Nelsinho Trad, eleito prefeito da cidade em 2004, nomeou o ortopedista pediátrico seu Secretário da Saúde, gestão durante a qual ele se destacou no combate à dengue. Porém, o mandato também foi marcado por acusações de corrupção contra Mandetta e o então prefeito Trad.

De lobista a ministro da Saúde

No final de 2010, Mandetta foi eleito deputado federal. Na Câmara, chamou atenção por defender uma agenda conservadora, a exemplo de sua veemente oposição a um afrouxamento da lei anti-aborto. O atual ministro da Saúde ficou conhecido por suas críticas ao programa Mais Médicos, criado em 2013 no governo da então presidente Dilma Rousseff.

Mandetta organizou a resistência das associações de médicos contra o envio de milhares de profissionais cubanos para trabalhar em regiões carentes. Segundo Mandetta, o envio de médicos sem qualificação tinha motivação ideológica e produzia montanhas de cadáveres. Na campanha eleitoral, em 2018, Bolsonaro utilizou o Mais Médicos como exemplo de uma suposta infiltração socialista no Brasil.

A eleição de Bolsonaro inflamou a ascensão política da família de Mandetta. O primo Trad, agora senador, pertence ao círculo íntimo de Bolsonaro. Mandetta entrou no governo como um dos três políticos do Democratas (DEM), a legenda de centro-direita mais tradicional do país. Depois de ser ameaçada pela irrelevância política nos anos 2000, protagonizou um retorno impressionante após a virada política à direita no Brasil em 2015.

Apoio no Congresso e no governo e entre a população

Assim, o DEM do Congresso forma o respaldo parlamentar para o presidente sem partido. A legenda ocupa a presidência da Câmara, com Rodrigo Maia, e a do Senado, com Davi Alcolumbre. Os dois teriam ameaçado boicotar os pacotes de auxílio para o coronavírus, assim como futuras iniciativas legislativas no Congresso, caso Bolsonaro demita Mandetta.

No governo, Mandetta também tem posição forte. Tereza Cristina, ministra da Agricultura e representante do poderoso agronegócio, é sua aliada próxima. E, até agora, os militares influentes no governo Bolsonaro também apoiaram Mandetta, que é visto como “voz da razão” no gabinete de nomeação ideológica de Bolsonaro.

Três entre quatro brasileiros avaliam a gestão da crise por Mandetta como boa – sua aprovação nesse contexto é duas vezes maior do que a do presidente. Ao lado do ministro da economia, Paulo Guedes, e do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, Mandetta agora seria o terceiro ministro “indemissível” de Bolsonaro, segundo avaliação do jornalista Merval Pereira, colunista e comentarista d’O Globo. Mesmo assim, não seria surpresa se Mandetta fosse demitido.

Nos últimos dias, o clima entre presidente e ministro se deteriorou ainda mais. Bolsonaro chegou a encontrar seus apoiadores várias vezes – um sinal claro de que não aceita as regras de distanciamento recomendadas por Mandetta.

O ministro, por sua vez, repreendeu indiretamente o presidente em entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo. De acordo com observadores, a crítica ao chefe não caiu bem entre os militares do governo, e o apoio desse segmento a Mandetta parece estar minguando.

O fato de Bolsonaro não ter demitido Mandetta pode ter relação com o fato de ninguém saber qual será a seriedade da pandemia do coronavírus no Brasil. Se o número de mortes continuar subindo, Bolsonaro ainda precisará de Mandetta – como bode expiatório para a catástrofe. Se o demitir antes, o próprio presidente deverá ser responsabilizado pelo desastre.

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