José Ribamar Bessa Freire

“Enquanto os leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias

de caça sempre glorificarão o caçador” (Provérbio Igbo da Nigéria).

Ocupadíssimo (a) e politizadíssimo (a) leitor (a), desculpa a minha insistência em retomar aqui um tema que – eu sei, eu sei – é considerado por muitos brasileiros como insignificante, além de inoportuno, mormente num período eleitoral, em que todo mundo está obsessivamente preocupado com a eleição presidencial definidora do destino do Brasil. Já estou até ouvindo algum defensor do voto útil murmurar:

– Iiiih! Lá vem o chato e monotemático Taquiprati falar de índio outra vez!

Adivinhou! É isso mesmo: índio. Museu do Índio de Uberlândia, dirigido pela antropóloga Lídia Meirelles, que organizou nos dias 12 a 14 de setembro o IV Encontro Questão Indígena e Educação, do qual eu participei, aberto com um minuto de silêncio pelo incêndio do Museu Nacional. Mas vem cá, só de curiosidade te pergunto:

– Quem te disse que a temática indígena é tão inútil assim, tão irrelevante assim para o Brasil?

Suspeito que sei a resposta. Quem te disse foi a escola, a mídia, o museu, a família, as igrejas, os partidos políticos, as redes sociais, enfim todas as respeitáveis instituições que fazem a nossa cabeça. Com raras exceções, elas silenciam ou então, quando mencionam índios, é para reforçar preconceitos. Por isso, não é nenhuma novidade que quem fica prisioneiro dessas narrativas, ignorante dessas culturas, não queira nem tocar no assunto considerado menor, desimportante e “folclórico”.

De qualquer forma, podemos negociar. Nem para um, nem para o outro: vamos bater papo ligando eleição, índios e voto útil. Pode ser?

Assisti debates com os presidenciáveis e seus vices. Os jornalistas perguntam tudo: programas de governo, economia, agronegócio, desemprego, ecologia, reforma trabalhista, previdência, segurança, educação, saúde, alianças políticas, mas também abobrinhas sobre vida pessoal, fofocaand the devil to four, incluindo a Venezuela de Maduro que produz orgasmo cósmico em alguns coleguinhas partidarizados. Não perguntam chongas sobre os índios no Brasil. Parece que os índios não existem. Estão invisíveis no painel eleitoral. Não são importantes para o nosso país?

Borduna no planalto

A projeção do censo do IBGE de 2010 mostra que vivem hoje aqui mais de 1 milhão de índios, falantes de 274 línguas, com seus cantos, danças, poesia, narrativas, mitos, rituais, artes, saberes, criativas formas de se relacionarem com a natureza, produzindo técnicas e conhecimentos capazes de contribuir para melhorar a vida de todos nós. Lutam para viver em paz nos restos de seus territórios invadidos pelo agrobanditismo num processo que já dura mais de cinco séculos.

Só dois candidatos, que estão em extremos opostos, mencionaram os índios. Um deles para anunciar de forma truculenta e raivosa, com espuma pela boca, de que não permitirá demarcar nem um milímetro sequer de terras indígenas que “prejudicam o agronegócio e outros interesses comerciais”. Corremos “o risco de termos presidentes índios com borduna na mão”, se eles “não deixarem de ser índios e não se integrarem à sociedade brasileira” – disse. Não mencionou o risco de termos um com revólver no coldre. O seu vice, que envergonharia o marechal Rondon, chamou os índios de “indolentes”.

O outro candidato, cuja vice é Sônia Guajajara, encampou as reivindicações do movimento indígena: defesa de territórios, línguas e culturas como garante a Constituição de 1988. Os demais ficaram calados e nada lhes foi perguntado. Ciro Gomes, que conhece o Brasil, traz de vice a Miss Motoserra. Marina Silva, que conhece o drama indígena, até agora visitou áreas do agronegócio dito “palatável”, mas esqueceu as aldeias. Os dois em um dos debates se manifestaram rapidamente a favor da demarcação das terras indígenas, defendendo a indenização dos fazendeiros que as ocupam ilegalmente. Haddad, embora paulistocêntrico, foi quem como ministro da Educação tentou mudar a situação e assinou, em 2008, a Lei 11.645 que torna obrigatória a temática indígena em sala de aula.

O que aconteceu nas escolas nesses dez anos? Esse foi justamente o tema do evento do Museu do Índio da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Alguns intelectuais indígenas – Edson Kayapó, Eliane Potiguara, Renata Tumbinambá, e não indígenas – Elenita Queiroz (Ufu) e Danielle Bastos (Uerj), debateram o assunto. Minha fala – “Assim se passaram dez anos: o voo de um passarinho, a sabedoria de um beija flor” – abordou o uso de dois livros didáticos em sala de aula. É sonho pensar que a política indigenista será pautada nas próximas eleições por jornalistas e candidatos já como resultado da aplicação da lei?

Voo do passarinho

Escolhemos dois livros para ilustrar algumas mudanças, ainda insuficientes, ocorridas nesses dez anos. O primeiro deles “Te mandei um passarinho” vem sendo utilizado aqui e ali em sua versão digital, pois não foi impresso.  Elaborado no contexto de edital do MEC, gestão Haddad, na Série Literatura para Todos, se destinava a neoleitores do Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e foi organizado por quatro professores não indígenas, mas seus autores são todos escritores indígenas de trinta etnias de todas as regiões do Brasil.

A produção gráfica e editorial é extraordinariamente impactante, com ilustrações coloridas feitas por artistas plásticos indígenas. São 82 páginas divididas em três partes.

1) “Histórias moram dentro da gente”, com trechos de diferentes narrativas míticas explicando a origem do mundo;

2) “Esta terra tem vida”, com a visão de várias etnias sobre sua relação com a natureza;

3) “Por que isso se passa comigo”, abordando a questão existencial, as relações pessoais e sociais, a questão da memória e da resistência indígena.

No final, descreve brevemente a situação atual das etnias dos autores, além de apresentar pequeno glossário com a explicação de termos de línguas indígenas usadas nos textos. O título se inspirou no poema bilíngue português-nheengatu recolhido no Pará por Couto de Magalhães, em 1865, quando o nheengatu ainda era falado por parte da população da Amazônia.

Vários testes de recepção foram feitos, entre outros, com participantes da Jornada Cultural da Ilha do Marajó, em Soure, no Pará, com os guarani do curso de formação de professores de Santa Catarina, com as presidiárias de um penitenciária feminina da Bahia e com professores da rede de ensino do Rio de Janeiro. Em todos eles, a reação foi similar à de Couto de Magalhães, maravilhado com as histórias “originais e belas” dos índios, que se refere a elas como um “verdadeiro colar de pedras finas, tanto pelo espírito e animação do enredo, como pelo laconismo, sobriedade das cenas e clareza”.

O outro livro “Maino’i Rapé – o Caminho da Sabedoria” é bilíngue guarani x português com desenhos e textos feitos pelos índios para quem o beija-flor (maino’i) simboliza a sabedoria. Traz dados de demografia e mapas. Mostra as casas, a agricultura, as comidas, a caça e a pesca, a religião, a ciência e a astronomia guarani, a taxonomia na área de botânica e zoologia, a arte e cestaria, a relação com a natureza, as festas e danças, a língua e a escola bilíngue, o uso do computador, as narrativas míticas, como namoram e casam os guarani, como se relacionam com os filhos e como brincam as crianças.

No debate, aflorou a forma como esses dois livros estão sendo recebidos por crianças e jovens em algumas escolas. Será que o conhecimento das culturas indígenas pode contribuir para iluminar o eleitor a dar um voto que até agora nem sempre tem sido útil ao Brasil? No horário eleitoral gratuito, muitos candidatos só falam merda e, talvez por isso, não há lugar para os índios em seus discursos. Votar neles será sempre um voto inútil, que glorifica apenas os caçadores de leões.

Referências:

  1. Te mandei um passarinho…. Prosas e versos de índios no Brasil. Organização dos textos e ilustrações de autores indígenas: Ira Maciel, Nietta Monte, Nubia Melhem e José R. Bessa Freire. Brasília. MEC. 2007 (só existe versão digital)
  2. Maino’i Rapé – O caminho da sabedoria. Coordenação editorial Lucila Silva Telles. Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. IPHAN. UERJ – Programa de Estudos dos Povos Indígenas.  UNESCO e Escola Indígena Guarani Karai Kuery Renda. Rio. 2009