Desde 2018, a gestão migratória do fluxo venezuelano no Brasil é feita pela Operação Acolhida, força-tarefa logística para o estado de Roraima, coordenada pelo Exército Brasileiro e agências internacionais e nacionais, muitas delas vinculadas à Organizações das Nações Unidas (ONU).

Após quase cinco anos de intenso fluxo migratório para o Brasil (2015-2020), esse modelo de resposta militarizada continua criando dificuldades para que as ações possam ir além emergência, de modo a fortalecer comunidades migrantes em processo de autonomia e integração à sociedade brasileira.

Criada durante a gestão de Michel Temer (2016-2018), a operação tem por objetivo organizar a chegada dos venezuelanos no Brasil. De forma tardia, o governo federal assumiu, por meio da Medida Provisória 820, o controle do acolhimento dos venezuelanos, porém, optou por designar o Ministério da Defesa para coordenar as ações de acolhimento.

No início da Operação, algumas organizações da sociedade civil se posicionaram contra a militarização. A polêmica chegou até Genebra (Suíça), à 38ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2018, pela voz da ativista venezuelana Lígia Bolívar, que denunciou, a violação de direitos das mais de 1,6 milhão de pessoas que deixaram a Venezuela rumo a outros países das Américas. A denúncia fez menção ao processo da acolhida no Brasil.

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) também se posicionou contrário à gestão militarizada, alegando que a medida estava na contramão do que preconiza a Nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/17), ou seja, a substituição do paradigma da segurança nacional pela lógica dos direitos humanos.

A colhida de migrantes envolve aspectos que fogem ao escopo das Forças Armadas

“A adequada acolhida de migrantes envolve aspectos de documentação, abrigamento e acesso a direitos, competências que fogem ao escopo constitucional das funções das Forças Armadas”, destaca o relatório produzido pelo CNDH, em 2018.

Mesmo com todas as recomendações, a Operação Acolhida está sendo implementada desde março de 2018, e se concentrou em três pilares de atuação: ordenamento da fronteira, abrigamento dos migrantes e interiorização. Após três anos de atuação, Marcia Oliveira, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF-UFRR), avalia que a Operação está sendo  insuficiente para dar conta da complexidade do contexto migratório em Roraima.

As políticas migratórias não são efetivas, são apenas emergenciais

“A atual política de acolhida apresentada pelo Estado não corresponde aos anseios (humanitários), num contexto em que as políticas migratórias não são efetivas, são apenas emergenciais, tanto da parte do Estado quanto das agências nacionais, internacionais e organismos governamentais”, argumenta a professora.

Na contramão da autonomia 

Atualmente, a Operação Acolhida está à frente, junto com diferentes organizações humanitárias, de 14 abrigos na capital Boa Vista (13 de Setembro, Jardim Floresta, Latife Salomão, Nova Canãa, Pintolândia, Rondon 1, Rondon 2, Rondon 3, Santa Tereza, São Vicente 1, São Vicente 2 e Tancredo Neves) e Pacaraima (BV-8 e Janokoida). No total, os espaços abrigam 4.518 pessoas, em sua maioria mulheres chefes de família (cerca de 960).

A autonomia das pessoas migrantes é um ponto de ebulição para a atual gestão migratória, uma vez que a Operação Acolhida é também a principal responsável pela desarticulação das ocupações autônomas autogeridas por migrantes.

“Meu pedaço da Venezuela no Brasil”, conforme comunitários definem as ocupações espontâneas / Benjamin Mast

Até o momento, das 10 ocupações espontâneas existentes em Boa Vista, oito já foram desativadas (Antiga Sec. Educação, Totozão, Segad, Antiga Creche, Futura PM, Clínica de Reabilitação, Antigo Shopping e Casa Bernardo Coutinho), onde viviam cerca de 1.400 pessoas. Realocadas em vagas remanescentes em abrigos, passaram a receber temporariamente auxílio aluguel ou foram interiorizadas. Ainda estão ativas as ocupações na Embratel e Clube do Trabalhador (Ka’Ubanoko).

Vivemos no abrigo como prisioneiros, não podemos nem cozinhar nosso alimento

O principal motivo para o desmonte das ocupações, segundo a Operação Acolhida, está relacionado à “falta de condições sanitárias nas ocupações espontâneas”. Os abrigos, porém, tampouco conseguem oferecer condições adequadas para a comunidade. “Vivemos no abrigo como prisioneiros, não podemos nem cozinhar nosso alimento, temos pouco acesso à água, vivemos em barracas, são banheiros coletivos para 500-700 pessoas. Eu falo a partir da minha experiência e de muitos outros migrantes. Já vivi em abrigo com um filho recém-nascido e foi uma experiência que não quero repetir. Nesse espaço a nossa palavra não conta, não existe decisão nossa”, afirma a líder crioula do Ka’Ubanoko, Yidri Torrealba.

Segundo nota da Operação Acolhida, as desocupações são realizadas conforme o Plano Emergencial para as Ocupações Espontâneas e atende a “todos os critérios humanitários legais”. Contudo, em nenhum momento o Plano envolveu as comunidades venezuelanas das ocupações espontâneas em sua construção. “Eu sei o que é uma consulta prévia e sei que o que eles estão fazendo não é uma consulta, eles nos deram uma informação. Eles só deram uma opção: abrigo. Eles chamam isso de consulta. Nos sentimos vulneráveis”, afirma a vice-cacique indígena Warao da Ka’Ubanoko, Leannys Torres.

Vice-cacique indígena Warao do Ka’Ubanoko, Leany Torres, que representa cerca de 140 famílias indígenas da ocupação / Benjamin Mast

A ocupação Ka’Ubanoko possui uma comunidade interétnica, composta por migrantes venezuelanos não-indígenas (crioulos) e por povos indígenas em deslocamento, pertencentes a quatro etnias: Warao, Pemon, Eñepa e Kariña.

A comunidade fica localizada no bairro periférico Jóquei Clube e recebeu o comunicado que haveria a desocupação completa do espaço no próximo 28 de outubro, data que está sendo flexibilizada por pressão da comunidade. A notícia inesperada em meio à pandemia foi anunciada pela Operação Acolhida, que pretende acabar com a resistência à militarização da gestão migratória.

O grupo tem total consciência de sua organização, é uma comunidade legítima que não deveria ser deslocada

“Ka’Ubanoko é resistência porque representa essa possibilidade de acolhimento e integração com a sociedade local. O grupo que está ali tem total consciência da sua organização. É uma comunidade legítima que não deveria ser deslocada”, explica a professora Marcia.

Mesmo com a ameaça de despejo à vista, e a coação por parte dos militares, que passaram a convocar reuniões para falar sobre o despejo, a comunidade permanece organizada e firme no propósito de autogestão. “Abrigo e interiorização são soluções de curto prazo, que aumentam ainda mais o problema, que eles transferem para outros estados. Eles não têm as respostas de longo prazo, mas nós temos: construção de comunidades autônomas”, finaliza Yidri Torrealba, do Ka´Ubanoko.

Comunitária do Ka’Ubanoko faz hallaca, comida tradicional venezuelana / Benjamin Mast

 

Fonte: Brasil de Fato