Ernesto Marques*

Para que não se esqueça, é preciso começar afirmando: golpe é golpe, não interessam os instrumentos e o nível de sofisticação de seu manejo. Não houve quartelada, como em 1964, mas apesar de o golpe de agora ter até os arroubos burlescos de um outro Mourão, os coturnos foram trocados pelas togas.

Para que nunca se esqueça, é bom frisar o óbvio: em qualquer golpe, aqui ou em qualquer parte, a primeira vítima é a democracia. Um governo legitimamente eleito foi deposto em 1964, como em 2016, pelas mesmas “forças ocultas” que comandaram quartéis e hoje pesam sobre tribunais.

Para que nunca se esqueça de que golpe é golpe, vale lembrar que o arbítrio de hoje pode até dispensar a ameaça ostensiva das armas, sem deixar de ser violento. Não interessa se as prisões arbitrárias aconteceram antes sob baionetas e agora sob vara.

O pau-de-arara e a cadeira do dragão ferem a carne antes da alma, mas a privação da liberdade, seja numa breve condução coercitiva, numa prisão temporária interminável ou numa sentença injusta, começa a torturar a alma antes mesmo do encarceramento.

Para que não se esqueça da covardia cínica comum a todos os golpistas, é imperioso dizer o óbvio: suicídio é uma coisa e assassinato é outra, bem diferente. Tanto o jornalista Vladimir Herzog, quanto o reitor Cancelier foram covardemente assassinados.

Para que não se esqueça do desastre social de todo golpe, vale lembrar que sempre há uma minoria indecorosamente beneficiada em prejuízo da maioria.

Para que nunca mais aconteça, é preciso aprender com a história que se está escrevendo desde o cinquentenário da quartelada de 1964 e agora, a cada novo capítulo dessa uma cruzada farsesca, mais uma vez, em nome da moral e dos bons costumes.

Para que nunca mais aconteça, é preciso reconhecer que uma comissão da verdade de verdade não pode sofrer embaraços e nem tampouco  ser constrangida pela falta de  condições objetivas para investigar e pela conciliação sem limites. Desde Jango, conciliação demais resulta em golpe.

Para que nunca mais aconteça, é preciso reconhecer que o golpe de hoje é consequência, entre outros fatores da impunidade que premiou os golpistas de ontem com a liberdade até para defender a tortura, o estupro e a subversão da ordem democrática, a covardia.

Nestes tempos modernos, a roda da história gira mais rápido, e talvez as trevas da anarquia judiciária instaurada em 2016 durem menos do que a noite de 21 anos iniciada em 1° de abril de 1964. E quando o sol da liberdade novamente brilhar no céu da pátria, o Brasil precisará de uma comissão da verdade. De verdade e sem simulacros, para nunca mais sermos submetidos à torpeza de um golpe.

Para que nunca mais aconteça a exposição do Brasil ao ridículo, será imperioso revelar toda a podridão escondida por detrás da opulência indecente dos tribunais. Revelar o papel desempenhado por cada servidor público das carreiras jurídicas no golpe que destruiu a engenharia brasileira, entregou tecnologia e riquezas nacionais e vilipendiou a democracia.

Todas as afrontas às regras do Direito haverão de ser rigorosamente punidas, como não o foram as torturas e assassinatos da ditadura, para que nunca mais aconteça um golpe e todos os crimes contra a humanidade e de lesa-pátria nos quais reincidem golpistas de qualquer natureza e em qualquer tempo.

Para que nunca mais aconteça, é preciso não deixar vazio o banco dos réus onde não sentaram covardes fardados, como o sombrio Brilhante Ustra. Togados de primeira instância ou de cortes superiores que mandaram às favas o Direito em nome de um clamor cultivado diariamente na telinha não poderão ter outro lugar num tribunal.

O agente Moro, onipotente e onisciente até nas férias, teve ontem a sua mais retumbante vitória de Pirro. Para manter Lula preso, ele e seus superiores na hierarquia do golpe, têm agora o mundo inteiro como testemunha do crime que estão a cometer contra o Brasil.

Difícil imaginar algum futuro auspicioso para um país que não consegue punir a reincidência em tantos e tão graves crimes contra a democracia sequer no tal tribunal da história.

O direito à verdade e à memória que não tivemos plenamente sobre  o pós 1964, evidentemente, não bastará.

*Ernesto Marques é jornalista