Já imaginou se a verdadeira história não estivesse nos livros de história, mas numa obra de ficção?

“A história é escrita pelos vencedores.” A frase atribuída à George Orwell ilustra sobremaneira a situação dos nossos livros de história e, com frequência, é símile da escassa informação encontrada na literatura com respeito à Guerra do Paraguai, tornando tarefa hercúlea distinguir o fato da invenção. Assim foi, assim é, durante algum tempo, mas nunca é para sempre assim, porque a história é feita de fatos e povos, e fatos e povos, como sementes adormecidas, têm a estranha mania de brotar através das lajes sobrepostas do tempo. E a verdade não desaparece do jardim, mesmo quando é podada pela força. Um jardineiro esmerado pode dessa forma trabalhar nesse terreno, remover os abrolhos, as ervas daninhas, facilitar o caminho para germinarem os eventos passados.

Foi o que fez o escritor M. R. Terci quando escrevia seu novo romance, Imperiais de Gran Abuelo – Crônicas de Pólvora e Sangue, pela Editora Pandorga, livro que ganhou destaque após a 25ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, onde foi sucesso de público e vendas.

“Cento e cinquenta e cinco anos se passaram, a Guerra do Paraguai ainda é palco de inúmeros debates em meios acadêmicos, sobretudo nos livros de História. Muitas questões não definidas, muita inverdade foi parar nos livros escolares. Mas a verdade é semente e, com o tempo, pode brotar. No âmbito das disputas nas varas e tribunais da justiça, com frequência, o tira-teima vem da testemunha ocular, de quem presenciou os fatos. Também é assim na história. O soldado que marchou e encharcou de sangue as suas botas nos charcos paraguaios, há muito já partiu, mas ficaram as cartas, os diários, os relatos dramáticos na escrita tremida de quem viveu todo o horror da guerra”. – Menciona Terci.

Em seu livro, mesmo quando adentra o terreno fértil da fantasia, arrebanhando todos os elementos ficcionais necessários para descrever a praga como arma de guerra para exterminar os soldados imperiais sob o comando do Marquês do Herval – numa versão inaugural daquilo que seria definido no futuro como guerra biológica deflagrada pelo uso de microrganismos e toxinas –  Terci coloca sob nova perspectiva muitas lições que aprendemos anteriormente nos livros de história, o autor traz à tona fatos antes desconhecidos do público.

No seu penejar, as memórias do capitão Amadeu Carabenieri, narrador e protagonista do livro, descrevem que cerca de 90% da população masculina paraguaia morreu nos cinco anos do conflito, comprometendo, sobremaneira, o crescimento econômico do país por muitas décadas. A derrota do ditador paraguaio Solano López, a ocupação militar brasileira por 10 anos, pagamento de pesada indenização e o parcial extermínio de seu povo, tornou o Paraguai um dos países mais atrasados da América do Sul.

Até 1870, a guerra já havia matado cerca de 350 mil pessoas e, ao final do conflito, o Conde d’Eu, genro do Imperador Dom Pedro II e encarregado das tropas brasileiras após o afastamento do Duque de Caxias, recebera ordem de matar mulheres e crianças que viessem a levantar armas contra as forças de ocupação brasileira, no entanto, explicitamente as ordens falavam de “matar até os fetos nos úteros das mulheres”, verdadeiro genocídio.

Muito se discute sobre o que iniciou o conflito. Alguns defendem que a guerra começou com a invasão da província brasileira de Mato Grosso pelo exército Paraguaio, outros aduzem que a reação paraguaia ocorreu após a intervenção armada do Brasil no Uruguai e que Solano López temia que após a subjugação do Uruguai, o Paraguai seria o próximo a ser invadido pelo Império do Brasil, mas nunca houve evidência de que isso aconteceria. A reação de López foi desproporcional, mas patriótica. Na óptica de Terci, o caudilho queria “apenas molhar as galochas nas águas do oceano Atlântico”, o que é certo pois havia uma política expansionista por traz das ações do ditador. Era um homem com um plano. Declarou guerra em busca de novos territórios e de uma saída para o mar através do domínio do Rio Prata, libertando o Paraguai das altas tarifas alfandegárias cobradas pelo porto de Buenos Aires.

Dom Pedro II tinha intenção de capturar Solano López, mas o ditador foi executado pelos soldados sob o comando do general Câmara em Cerro Corá, em flagrante insubordinação.

Apesar da vitória, o Brasil teve muitas perdas materiais produzidas pela economia de guerra e, nos anos seguintes, o Banco da Inglaterra, instituição que financiou o conflito desde seu princípio, viria a extorquir juros imensos do Império do Brasil.

A guerra teve, contudo, impacto positivo no processo de abolição da escravidão, pois o contingente brasileiro era formado em sua maioria por negros e pardos, além de escravos forros que integravam 10% das tropas.

“Acredito que, com o intuito de produzir um entretenimento de qualidade, é possível conciliar a história com a ficção, desde que, descartado o fantástico e ficcional, o leitor venha a ter contato com fatos que realmente aconteceram. Muitos leitores do gênero, que travaram contato com os Imperiais de Gran Abuelo, têm enviado e-mails e mensagens mencionando que durante ou após a leitura do livro, sentiram a curiosidade aguçada e a extrema necessidade de pesquisar mais sobre os fatos relatados. Esse é, sem dúvida, o grande mérito de minha pequena história de horror.” – Sentencia M. R. Terci.

*M. R. Terci é escritor, roteirista e poeta.  Antes de se dedicar exclusivamente a escrita, foi advogado com especialização em Direito Militar e mestrado em Direito Internacional, Ciência Política, Economia e Relações Internacionais. É o criador da série O Bairro da Cripta, lançada anteriormente pela LP-Books e que reforçou seu nome como um dos principais autores brasileiros de horror da atualidade. Com base em fatos históricos, Terci substitui os castelos medievais pelos casarões coloniais, as aldeias de camponeses pelas cidadezinhas do interior, os condes pelos coronéis e as superstições por elementos de nosso folclore e crendices populares, numa verdadeira transposição do gótico para a realidade brasileira. Seus livros não são apenas para os fãs do gênero horror. Seu penejar é para quem aprecia uma narrativa envolvente, centrada na experiência subjetiva dos personagens mediante as possibilidades que o contexto sobrenatural de suas estórias permite.