Teorias da conspiração, narrativas inventadas nas quais há sempre um inimigo tramando algo para dominar uma situação, acompanham Jair Bolsonaro há muito tempo como estratégia política. Com ele na Presidência da República e diante de uma pandemia mundial, tornaram-se também guia para políticas públicas.

A conclusão é de um estudo liderado pela antropóloga Isabela Kalil, professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenadora do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil), publicado no início de junho na revista científica Global Discourse, da Universidade de Bristol.

Os pesquisadores analisaram nove pronunciamentos oficiais de Bolsonaro em rádio e televisão, entrevistas e manifestações em redes sociais do presidente e de seu círculo próximo ao longo de 2020 e cruzaram o material com base de dados de três agências de checagem, em busca de teorias conspiratórias.

Uma narrativa adotada por Bolsonaro logo no início da pandemia foi a de que a covid-19 teria sido criada pela China como parte de um plano comunista para dominar o mundo. Para fazer isso, o presidente usou a “mesma estrutura” do medo do comunismo que pontua a sua carreira política há décadas, diz Kalil.

O presidente também adotou o discurso antivacina defendido pela extrema direita global, tema que vem acompanhado na esfera pública de diversas teorias da conspiração, como a de que os imunizantes poderiam inserir um chip 5G nas pessoas ou alterar o DNA de quem foi imunizado.

“Se tem conspiradores se mobilizando para dominar o mundo, essas pessoas são vistas como inimigas. Isso funciona muito bem para Bolsonaro, porque ele tende a usar metáforas bélicas para tudo e a entender a política como uma guerra”, diz Kalil.

Isso acabou se refletindo, segundo a pesquisa, em decisões de governo sobre recusa de vacinas, promoção de remédios sem eficácia e incentivo à desinformação sobre a pandemia entre a população. “Na boca do presidente, essas teorias viram discurso de Estado e guiam políticas públicas”, afirma a pesquisadora.

O ganho político para o presidente seria a promoção de caos, um cenário em que Bolsonaro “consegue se movimentar politicamente muito bem”, aponta Kalil.

DW Brasil: O que são teorias da conspiração?

Isabela Kalil: Desde sempre, existem hipóteses explicativas que podem ser mais ou menos fantasiosas sobre coisas que não sabemos. Nós, seres humanos, temos muito desconforto quando não sabemos o porquê de alguma coisa. Se há um fato relevante, as pessoas criam hipóteses de por que ele acontece.

O que faz virar uma teoria conspiratória? É quando a hipótese diz que há uma trama por trás, daí o nome conspiração. Que há um grupo de pessoas escondendo algo do restante da população e querendo dominar o mundo ou manipular a população.

As pessoas acreditam nessas teorias por qual motivo?

Se você detém a resposta de um segredo, detém um poder. Uma vez, estava conversando com um terraplanista e ele me deu uma resposta que sintetiza isso: “Nossa, você estudou tanto, fez doutorado, e não sabe que a Terra é plana?”. Ou seja, ele teria muito mais poder que eu dessa perspectiva.

Outra dimensão é a do medo. Se você acredita que a pandemia foi fabricada por um vírus criado em laboratório para matar as pessoas, significa que você está em risco. Ou ao questionar se as vacinas são seguras. É legítima essa pergunta, tanto que a Anvisa se pergunta isso. Mas isso se transforma em teorias conspiratórias quando uma dúvida vai se ampliando até chegar a narrativas fantasiosas de que a vacina implanta um chip de 5G no seu corpo.

E há uma perspectiva social. Chega a um ponto que a crença existe porque alguém de prestígio em determinado grupo falou, ele sabe o segredo, e todos vão confiar.

Antes da pandemia, Bolsonaro já usava teorias conspiratórias?

Sim, uma é em torno do comunismo. Quem nunca ouviu nos anos 1980 a ideia de que, se a gente tivesse um partido de esquerda no poder, o presidente iria obrigar as pessoas a abrirem suas casas, e outras famílias iriam morar na sua casa? Isso tem há muito tempo no Brasil, e o Bolsonaro se baseia nesse medo do comunismo. É como se acendesse um alerta, os comunistas querem acabar com a religião, com o Estado, com a família.

Outra são questões relacionadas a gênero e sexualidade, como o chamado kit gay. Já entrevistei mulheres que diziam que o kit gay iria obrigar os meninos a se tornarem meninas.

Também temos a da fraude eleitoral, a ideia de que a eleição só será justa e correta se tiver uma auditoria feita por militares, e que tem que imprimir o voto. Desde a década de 1990, Bolsonaro acusa o sistema eleitoral de fraudulento.

Uma dimensão importante é a de que, se tem conspiradores se mobilizando para dominar o mundo, essas pessoas são vistas como inimigas. Isso funciona muito bem para Bolsonaro, porque ele tende a usar metáforas bélicas para tudo e a entender a política como uma guerra.

Como o presidente mobilizou essa dinâmica após o início da pandemia?

É a mesma estrutura. Bolsonaro já tinha criado uma narrativa em torno do anticomunismo, e essa narrativa é muito presente entre os militares brasileiros. A guerra contra o comunismo é o que justificou, entre outras coisas, o golpe de 1964 no Brasil. Quando os primeiros casos de covid-19 aconteceram em Wuhan, e Trump começou a falar em “vírus chinês”, Bolsonaro fez o mesmo. Era uma oportunidade, ele já tinha toda uma estrutura narrativa propícia para isso. A China passou a ser vista como o principal ator, que deliberadamente criou o vírus querendo dominar o mundo em uma suposta conspiração comunista.

Em um segundo momento, a China se tornou importante produtora de insumos de vacinas e de doses de vacinas. E no caso brasileiro, há uma peculiaridade, o principal local de produção de vacinas passou a ser São Paulo [com o Instituto Butantan], em parceria com um laboratório chinês.

Além do vírus chinês, a vacina chinesa. Para alguns, isso bastou para mostrar que a China tinha criado uma pandemia para crescer mais que os outros países, para acabar com o Ocidente e o capitalismo, e depois também teria criado a vacina. O ponto é que, na boca do presidente, essas teorias viram discurso de Estado e guiam políticas públicas.

O presidente também propagou desinformação sobre vacinas de mRNA, como a da Pfizer-BioNTech. Qual era o interesse aí?

A extrema direita, no contexto transnacional, se colocou como antivacina de maneira genérica, pela defesa da liberdade do indivíduo e contra as prerrogativas de que o Estado possa obrigar as pessoas a se vacinarem. Bolsonaro reproduz parte desse discurso genérico, mas depois vai se tornando contra o que eles chamavam de “vachina”, por conta de rivalidade com o [governador de São Paulo] João Doria.

Ao se colocar de maneira contrária às vacinas, é uma forma também de não investir em vacinas e investir na cloroquina. Tem um tuíte do Trump [de março de 2020] em que ele diz que tinham encontrado um remédio muito promissor, que era a cloroquina. Bolsonaro começa a fazer a mesma coisa, em um cálculo político que tem a ver também com interesses financeiros.

Como Bolsonaro mobiliza a dimensão do medo?

Quando o governo federal, numa situação de crise, não tem políticas públicas específicas para a pandemia, não comunica o que está acontecendo à população, se coloca em uma posição de se desresponsabilizar, isso gera insegurança social. No limite, do que as pessoas têm medo? De morrer, é um medo muito legítimo.

As pessoas sabem que estão em situação de insegurança, de que se ficarem doentes talvez nem consigam atendimento no hospital, não sabem se usam ou não máscara, se o remédio funciona ou não, se as vacinas são seguras ou não. O Estado joga essa responsabilidade aos indivíduos, e as pessoas reagem à insegurança de formas diferentes.

Tem gente que diz que o Estado precisa se responsabilizar, que precisamos cobrar do governo, nos mobilizar politicamente. Tem gente que, para conseguir sair dessa insegurança, adota a negação extrema. Acredita que não estamos em uma pandemia, que as pessoas não estão morrendo de covid-19, que a imprensa mente, que é tudo invenção só para prejudicar o Bolsonaro. É uma forma de lidar com isso.

Como as teorias de conspiração influenciaram a execução de políticas públicas na pandemia?

Quando escrevemos o artigo, nos baseamos basicamente no investimento do governo federal em cloroquina e na recusa às vacinas.

Mas o governo também se absteve de fazer uma ampla campanha de conscientização sobre a covid-19. Quando não faz uma política, é uma escolha, e ao não fazer isso deixou um terreno fértil para que as pessoas se informassem por canais informais. Elas precisam se informar, e o que vão consumir? Informação de baixa confiabilidade, conspiratória, desinformação de maneira geral.

O governo foi responsável por ampliar a desinformação. Temos inclusive no inquérito das fake news dados que mostram que haveria investimento de verba do governo em canais específicos do YouTube e o pagamento a certos influenciadores e personalidades.

Qual é o ganho político para Bolsonaro?

Quanto mais estivermos em uma situação de caos, melhor para o Bolsonaro. Ele consegue se movimentar politicamente muito bem nessas situações. A história política do Bolsonaro é a criação de caos. Quanto mais medo, incerteza e insegurança, mais ele ganha politicamente.

Fonte: Deutsche Welle (DW)