Pedro Augusto Pinho*

Jessé Souza, o maior sociólogo brasileiro vivo, publica seu aguardado estudo sobre a classe média ocidental (A classe média no espelho, Estação Brasil, 2018). Um trabalho que, em vários momentos, lembra Pierre Bourdieu, mas tendo estilo, foco e amplitude analítica próprios deste mestre nacional.

Não faço resenha, nem estudo crítico. A partir das pesquisas e análises de Souza, procuro entender as manifestações e compromissos políticos que desenham a sociedade brasileira nesta classe que, segundo seu trabalho, representa 20% de nossa população.

Fica claro que classe média não é somente um grupamento econômico. Nenhuma classe o é. As classes sociais são um conjunto de reconhecimentos mútuos e por outras classes, inclusive dos invisíveis, onde a quantidade de dinheiro interfere mais pela educação, latu senso, do que pelas propriedades. É a distinção, que Jessé Souza (JS) também considera.

Uma de suas grandes contribuições é a gênese. Como se forma a classe média e, em geral, as classes sociais.

Com perspectiva diferente, João Fragoso e Manolo Florentino escreveram O Arcaísmo como Projeto (Diadorim, RJ, 1993), mostrando que a sociedade agrária e a elite mercantil se uniram para perpetuar a sociedade excludente escravista e colonial. Tenho afirmado que o Brasil jamais deixou de ser colônia. Teve poucos momentos de rebeldia libertadora, logo sufocados por golpes e pela desconstrução e deformação do ideal de um poder nacional.

Também foi este modelo que impediu, diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos da América (EUA), a formação da elite industrial. No Brasil ela nasceu com imigrantes que logo se acomodaram e se uniram ao poder naquela sociedade agrária-exportadora-financista, e dependente.

Quando começa a se formar nossa classe média? Temos uma colonizada e outra de objetivos próprios. Esta primeira tem origem nos “agregados”, figura da história e das ficções nacionais. Os tenentistas dos anos 1920 constituirão “a primeira grande expressão articulada” da classe média, com a “ideia de refundar o Brasil” (JS) e terão seguidores em militares, políticos e intelectuais nacionalistas.

Sempre interessou à minoria que detém o poder, em todos lugares e todas as épocas, manter a ignorância da maioria, em especial sobre sua situação. Para isso usa o sobrenatural, o desconhecimento sobre a natureza, e coloca falsos objetivos para reivindicações destas maiorias.

Como acentua Jessé Souza, os tenentes queriam refundar o Brasil. Eles, quando no poder com o contragolpe de 1967, agiram no sentido da criação do Estado Nacional forte e rico. Só um Estado Nacional Soberano seria capaz de promover justiça social, educação, saúde, transporte, segurança e cidadania.

Todo esforço do neoliberalismo está em demonstrar que o Estado é fraco e incapaz. Mas ocultam que este Estado sempre foi dirigido pelo poder dependente, agrário-exportador, cuja receita era definida pela taxa de câmbio estabelecida no exterior.

Em resumo: um poder permanentemente endividado.

Tratemos, sinteticamente, da importante questão cambial neste universo de engodos e desinformações.

Entre 1961 e 1968, o Brasil adotou um sistema de taxa de câmbio nominal fixa, com maxidesvalorizações esporádicas. Em 1961, este sistema definiu duas taxas cambiais: uma para exportação de café e cacau e outra para exportações dos demais produtos e para as importações. No entanto, as pressões da elite já referida e de interesses estrangeiros no Brasil, obrigaram o governo a usar esquemas de “bonificações” e de “descontos” os quais, efetivamente, aumentavam a quantidade de taxas cambiais, tanto para exportações quanto para importações. Mas sempre em prejuízo do Estado Nacional.

Este sistema foi estabelecido pela Instrução 204, da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC). Um instrumento da política anti-industrial e de desemprego, sob a fantasia do “realismo cambial”.

Em 1964 foi unificada a taxa de câmbio e, até 1968, houve apenas três correções cambiais. Não é simples coincidência os governos Jânio Quadros e Castello Branco adotarem políticas contracionistas – hoje seriam de austeridade – que desestimularam a industrialização nacional e promoveram o desemprego.

De 1968 a 1990, o sistema adotado foi das minidesvalorizações. Porém o que se torna mais relevante é o estabelecimento de diversas taxas cambiais, conforme as estratégias de desenvolvimento nacional – I PND (1972-1974) e II PND (1975-1979). Havia, por exemplo, o câmbio para o trigo, para o papel de jornal, para o pagamento de serviços da dívida, para o petróleo cru e derivados etc. Estas taxas permitiram o Brasil atingir altos níveis de crescimento e implantar os programas nuclear, de informática, de energia da biomassa entre outros.

Voltava a ser construído o Estado Nacional Brasileiro, projeto inconcluso de Getúlio Vargas.

A partir de 1990, sob o domínio da banca, as taxas cambiais passam a ser fixadas pelos interesses deste sistema financeiro, no regime do câmbio flutuante. É um retorno ao Império, à República Velha.

O poço sempre pode ser mais profundo, mas já descemos bastante quando o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), o Estado mais industrializado do País, não é um industrial; como o juiz, considerado campeão na luta contra corrupção, está envolvido no Caso Banestado, da maior evasão de divisas do Brasil, de fraudes processuais, atestadas pela Polícia Federal e outros ilícitos. E é entregue a denominação religiosa o projeto de “escola sem partido”. Nem dá para rir.

Esta situação é o resultado de políticas anti-nacionais, desenvolvidas pelas esquerdas e pelas direitas, a partir de 1980, quando as Forças Armadas deixaram a condução do País.

Voltemos ao trabalho de Jessé Souza.

“Todo nosso comportamento está baseado em ideias, quer saibamos disso ou não. E, se não sabemos, não há como nos defender dessas ideias que influem em nossos atos, por vezes até em sentido oposto aos nossos interesses”.

São três formadores da opinião da direita e da esquerda no Brasil, segundo Souza: o “filósofo” Sérgio Buarque de Holanda, o “historiador” Raymundo Faoro e o “político” Fernando Henrique Cardoso. Esta “santíssima trindade” só poderia surgir em São Paulo, baluarte de nosso “ancien régime”, que combateu a formação do Estado Nacional de Vargas. JS afirma que o maior motivo foi a perda do “controle militar do Estado” pela elite agrário, exportadora, dependente paulista. Veja que, ainda nos anos 1960, o café tinha cambio privilegiado.

São Paulo identificou a necessidade de controlar o pensamento nacional (USP), a aviação independente da militar nacional (VASP), e a indústria submissa ao financismo, como na Inglaterra. Enquanto todo Brasil se desenvolvia com a União, a elite paulista buscava o desenvolvimento excludente, próprio, agindo como colonizador nativo. Os partidos que vem comandando o Brasil tem origem paulista e são, ambos, aliados da banca: PSDB e PT.

O banca, como escrevi diversas vezes, é socialista, é capitalista, é homofóbica,  é pela política de gênero, é religiosa, é ateísta, ela só não é nacionalista. O Estado Nacional é seu grande e maior inimigo. Veja os EUA, onde o aparelhamento do Estado, nos governos republicanos e democráticos, luta contra o industrialismo de Trump.

Nem esta ignorância, que nos impede de saber quem somos, é privilégio brasileiro.

Nas recentes manifestações, que tomam a França – les gilets jaunes (coletes amarelos) -, que deveriam ser a luta contra o neoliberalismo que domina o país (com socialistas e populares/direitistas, UMP) desde 1981, não é vista esta consciência, conforme podemos ler no Le Monde e Le Figaro e assistir nos jornais do canal TV5. São pessoas simples, pobres, como o jovem de uma cidade de 5.000 habitantes, que declarou ter comido, pela primeira vez, um “foi gras” deixado por automobilista numa mesa que coletava recursos para os bloqueadores de estrada. Nenhuma consciência de sua ação. Nenhuma compreensão da luta  em favor do Estado francês. Um mínimo ganho já o deixava contente, o “comprava”.

As Forças Armadas dos tenentes de 1920 tem enorme responsabilidade pela “refundação” do Estado Brasileiro. É a única instituição, de ação por todo território brasileiro, com força e confiança do povo para derrotar a banca, em suas diversas fantasias, laicas ou religiosas, psebistas ou petistas, de imagem séria ou corrupta, pois a banca nunca mostra a verdadeira cara.

Este livro de Jessé Souza ainda renderá outras reflexões.

*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado