Dados oficiais indicam que Prefeitura do Rio vem investigando cada vez menos na prevenção de enchentes e proteção de encostas. Mortes elevam pressão sobre Crivella

Foto: Silvia Izquierdo/AP

Por Felipe Betim/El Pais Brasil

As tempestades que resultam em enchentes e mortes no Rio de Janeiro fazem parte do cotidiano da cidade há mais tempo que as praias lotadas no fim de semana, as mesas de botecos que se espalham pelas calçadas ou os tiroteios que matam diariamente. O historiador carioca Luiz Antonio Simas lembra que, na década de 1570, o Padre Anchieta já se espantava com os alagamentos no Rio; ou que, em 1811, uma lendária enchente apelidada de “águas do monte” fez com que Dom João VI ordenasse que todas as igrejas acolhessem desabrigados. Se as fortes chuvas parecem ser inevitáveis nesses 454 anos em que a cidade existe, as tragédias que dela resultam podem, em sua maioria, ser evitadas com um plano de emergência e investimentos em saneamento básico, proteção de encostas, sistema de drenagem, entre outros. Mas até hoje os prefeitos e governadores ainda não se mostraram à altura do desafio. O caso do atual prefeito Marcelo Crivella (PRB), pressionado por um processo de impeachment aberto na Câmara dos Vereadores, chama ainda mais atenção, seja pelos cortes drásticos promovidos por sua gestão em prevenção de enchentes, seja pelas poucas explicações e promessas que apresenta depois que o caos está instalado.

Na segunda e na terça-feira desta semana a história se repetiu. Após um 8 de abril ensolarado e de calor intenso, um forte e incessante temporal irrompeu nos céus do Rio no início da noite, provocando enchentes capazes de cobrir os carros que trafegavam por algumas das principais vias da Lagoa, Jardim Botânico, Botafogo e Copacabana, bairros da nobre zona sul da cidade. Com o trânsito bloqueado, voltar para casa se tornou impossível e muitos acabaram presos durante horas em seus locais de trabalho. Ruas inteiras ficaram destruídas, fortes enxurradas carregaram lixo e tudo o que havia pela frente em favelas como a Rocinha, árvores caíram, um trecho da ciclovia Tim Maia desabou — pela quarta vez desde que foi inaugurada, em 2016 — e dez pessoas foram encontradas mortas até a tarde desta terça, algumas delas soterradas.

Crivella disse que a tempestade pegou sua gestão de surpresa, apesar do alerta feito pelo Centro de Operações da Prefeitura de que chuvas fortes eram, sim, esperadas. Na noite de segunda, disse que apenas 20 funcionários estavam trabalhando para conter os dados provocados pelo temporal. Nesta terça, admitiu que houve falha no planejamento e demora nas ações diante do caos provocado pelo temporal, além de falta de prudência de alguns órgãos municipais e de ausência de funcionários em alguns pontos da cidade. “Realmente ontem nós nos cobramos muito pela falta de pessoal na zona sul. Estávamos esperando chegar reboque, turma da Comlurb, da Rio Águas. Resolvemos mudar esse protocolo. Nas próximas chuvas em que tivermos previsão de grande precipitação em curto espaço de tempo, sobretudo na costa, no litoral, nós já teremos que ter esses equipamentos previamente nos locais”, disse ele. “Já era uma coisa que tínhamos visto anteriormente. Infelizmente não fomos prudentes para fazer agora. Teremos que ter reboques, pessoal da conservação e da Comlurb esperando previamente nesses locais”, acrescentou.

Entre os mortos estão Lúcia Xavier Sannento Neves, 63 anos, sua neta Júlia Neves Aché, 6 anos, e o taxista Marcelo Tavares Marcelino. Os três foram encontrados mortos dentro do veículo de Marcelino que foi soterrado após um deslizamento de terra na avenida Carlos Peixoto, que liga Botafogo e Copacabana. Avó e neta estavam em uma festa no shopping Rio Sul e pegaram o táxi na saída. Eram consideradas desaparecidas até que um amigo dos pais da criança, que estavam de férias na Califórnia, conseguiu acessar as imagens da câmara de segurança do shopping na noite de segunda e, com isso, identificar a placa do táxi em que estavam. Foi a partir disso que a polícia conseguiu rastrear o sinal de GPS do veículo.

Na mesma via, que margeia uma costa e é conhecida como ladeira do Leme, outros carros foram encontrados soterrados e socorridos. Até a identificação do sinal de GPS não havia nenhum sinal de que o carro com avó, neta e o taxista também estava ali. Só na tarde desta terça, quando amigos da família estavam escavando o local em busca do veículo, é que o corpo de bombeiros chegou. Era tarde demais.

Um deslizamento de terra no morro da Babilônia, no Leme, também acabou com a vida de outras três pessoas, sendo duas delas irmãs, de 53 e 55 anos. Crivella garantiu que vai rever o índice mínimo pluviométrico que aciona as sirenes em comunidades, um alerta que não tocou na Babilônia na noite de segunda. “Sem dúvida esse incidente na Babilônia vai nos fazer rever essa situação. Lamento profundamente que a Defesa Civil não tenha tido a oportunidade de ir lá, são muitas casas no Rio que são construídas em áreas inapropriadas”. Outras quatro pessoas também morreram na Gávea, Santa Cruz, Antares e Jardim Maravilha.

Cortes nos investimentos

A tempestade desta semana causou a segunda grande inundação no Rio só neste ano. A que ocorreu entre os dias 6 e 7 de fevereiro deixou ao menos seis pessoas mortas, provocou deslizamentos e a queda de outro trecho da ciclovia Tim Maia e fez com que Crivella decretasse luto oficial de três dias. Dados oficiais da Prefeitura, obtidos por meio do portal de transparência do município, indicam que sucessivos cortes orçamentários na prevenção de desastres. O valor pago em obras para combater enchentes registrou sua maior cifra em 2014, com 294 milhões de reais. A partir de então, ainda na gestão de Eduardo Paes (então no PMDB, hoje no DEM), os valores foram drasticamente reduzidos. Caiu para 130 milhões já em 2015 e para apenas 14 milhões em 2017. Em 2018 voltou a subir, para 66 milhões. Isso significa que, entre 2014 e 2018, os cortes superaram 77%.

A verba investida em saneamento, drenagem e proteção de encostas também sofreu um corte de cerca de 58% no mesmo período. Em 2014 o total gasto foi 545 milhões de reais, uma cifra que subiu para 724 milhões em 2016 e caiu para 145 milhões em 2017 e 224 milhões em 2018, de acordo com o portal de transparência da Prefeitura. Segundo informa o jornal O Globo, a prefeitura do Rio ainda não gastou nenhum centavo com drenagem urbana ou controle de enchentes neste 2019.

Já o principal responsável pelo saneamento básico, ausente em comunidades como a Rocinha, onde a água arrasta todo o lixo que se acumula, é a Companhia de Estado de Água e Esgoto (Cedae), vinculada ao Governo do Estado. “Temos uma fatalidade no Rio de Janeiro. A Cedae, no Rio de Janeiro, não tem rede de esgoto. Então, em muitos lugares da cidade, a companhia joga dejetos na nossa rede pluvial. Isso não deveria acontecer”, acusou o prefeito Crivella nesta terça. A empresa pública rebateu as acusações do prefeito: “As redes de abastecimento de água e de coleta de esgoto da Cedae não têm nenhuma relação com o sistema de drenagem de águas das chuvas, que são de competência exclusiva dos municípios, como todas as prefeituras sabem. Portanto, não é verdade que a Cedae ‘joga esgoto’ na rede de águas pluviais do Rio, como tem declarado o prefeito Crivella à imprensa”.

As respostas que Crivella vem apresentando desde que assumiu o cargo para o caos gerado por tempestades geralmente são mal recebidas. Em 2018 ele estava fora durante um temporal que paralisou a cidade, mas na sua volta não deixou a brincadeira de lado. “Lá em São Paulo também tem enchente. Vão até lançar um programa novo: o Balsa Família!”, afirmou na época, quando quatro pessoas morreram. Ele também disse que o grande problema do Rio é o lixo acumulado em bueiros e prometeu instalar “bueiros eletrônicos” que controlariam a quantidade de detritos pela cidade.

Desta vez, se apresentando com um semblante mais sério, admitiu erros e prometeu melhorias. Mas também acusou a União de não repassar recursos para novas obras. Pesquisadores vêm alertando que, devido aos efeitos das mudanças climáticas, tempestades como a que paralisou o Rio em pleno outono serão mais frequentes e ocorrerão inclusive fora de época. E cobram planejamento nas cidades. Os cariocas, acostumados com situações extremas ao menos nos meses do verão, esperam por esse planejamento há 454 anos.