As ameaças às eleições de 2022 e a defesa de que as Forças Armadas possam intervir em caso de conflito entre Executivo e Judiciário, temas frequentes na retórica do presidente Jair Bolsonaro e de seu entorno, foram abordadas em uma audiência nesta terça-feira (17/08) na Câmara com o ministro da Defesa, general da reserva Walter Braga Netto.

Braga Netto é um dos ministros que dão espaço a teorias que poderiam ser usadas para justificar uma ruptura democrática. Neste sábado, em discurso na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro, ele afirmou que uma das missões constitucionais das Forças Armadas seria assegurar “a harmonia entre os poderes” – algo não previsto na Constituição.

Outro ministro que compartilha essa tese é o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general da reserva Augusto Heleno. Nesta segunda, ele afirmou à rádio Jovem Pan que as Forças Armadas poderiam ser acionadas para intervir “em momento mais grave” de conflito entre poderes.

As falas de Braga Netto e Augusto Heleno se articulam com o tensionamento permanente entre as instituições promovido por Bolsonaro, que vem tentando deslegitimar as urnas eletrônicas e as eleições de 2022 e também disse na última quinta que as Forças Armadas poderiam atuar como “poder moderador”.

No início de agosto,  o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tomaram ações concretas para fazer frente a investidas de Bolsonaro, e o tornaram alvo de dois inquéritos criminais e um inquérito administrativo por ataques às urnas eletrônicas e ameaças às eleições de 2022.

Ida de Braga Netto à Câmara

Braga Netto deixou o posto de ministro-chefe da Casa Civil e assumiu a Defesa em março de 2021, após a queda do então ministro Fernando Azevedo e Silva e dos três comandantes militares. Alguns analistas interpretaram a troca como resultado de pressões de Bolsonaro por maior controle sobre as Forças Armadas. Braga Netto é considerado fiel ao presidente, e os três novos comandantes estavam ao lado de Bolsonaro no desfile militar realizado na Esplanada dos Ministérios na última terça, no mesmo dia da votação da Proposta de Emenda Constitucional do voto impresso, que acabou rejeitada pela Câmara.

Braga Netto foi chamado à Câmara para explica o teor de uma nota de 7 de julho, também assinada pelos três comandantes, afirmando que as Forças Armadas eram “fator essencial da estabilidade do país” e “não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. O documento foi uma resposta senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Pandemia, havia apontado a existência de “membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.

O requerimento para ouvir Braga Netto também teve o objetivo de questionar o ministro sobre reportagem publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo em 22 de julho que relatava que ele teria enviado um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), condicionando a realização das eleições de 2022 à adoção do voto impresso. Braga Netto e Lira negaram o teor da reportagem, que foi mantido pelo jornal.

“O Parlamento não pode ficar omisso diante do comportamento inadequado dos que estão no comando das Forças Armadas e que respaldam a postura do presidente de ameaçar de forma permanente a democracia brasileira”, afirmou à DW Brasil o deputado Elias Vaz (PSB-GO), autor do requerimento que levou Braga Netto à Câmara.

Na audiência desta terça, Braga Netto negou ter feito ameaças a favor da aprovação do voto impresso e que a nota assinada por ele e pelos comandantes teve o objetivo de desrespeitar os senadores.

A tese que justifica as ameaças

O argumento usado por Bolsonaro e seus ministros pare defender a legitimidade de as Forças Armadas intervirem em um conflito entre o Executivo e o Judiciário ou o Congresso é uma interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição – já afastada em decisões individuais tomadas pelos ministros Roberto Barroso e Luiz Fux, do STF.

O presidente e seu entorno entendem que esse artigo autorizaria as Forças Armadas a atuarem como poder moderador entre os três poderes da República. Essa tese decorre de uma doutrina antiga mas que segue atual entre parte dos militares brasileiros, que desde a proclamação da República, em 1889, se consideram herdeiros do poder moderador que era exercido pelo imperador do Brasil, afirma Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. “Mas a Constituição de 1988 não prevê de maneira alguma um quarto poder. O presidente ou o ministro que falam isso estão cometendo uma ilegalidade”, diz.

Essa ideia circula em redes bolsonaristas e ganha força sempre que há momentos de maior tensão entre o Planalto e o Judiciário, como o atual.

Cortina de fumaça e tensionamento contínuo

É normal que a relação entre os três poderes em uma democracia enfrentem atritos, mas o sistema foi pensado justamente para absorver esses choques. A ideia de que os militares poderiam atuar como um quarto poder e força política “não tem previsão constitucional” e vem sendo explorada por “maus militares que buscam fazer com que as Forças Armadas interfiram no processo político”, afirma Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP.

Ele avalia que a insistência do presidente e de seus ministros nesse tema tem dois objetivos. Um é criar uma “cortina de fumaça” para desviar a atenção de problemas concretos enfrentados pelo país que dependem da ação do governo para serem solucionados, como desemprego, inflação e crise de energia.

O outro é manter o sistema político em tensionamento contínuo, seguindo o manual de outros líderes populistas e autoritários que desejam “romper os limites estabelecidos”. No caso de Bolsonaro, diz Vilhena, o intuito é fragilizar as instituições que impõem limites à sua ação e deslegitimar as eleições de 2022 para que, caso ele seja derrotado, o resultado possa ser questionado.

As instituições são capazes de limitar Bolsonaro?

Vilhena afirma que um conceito importante para entender o atual momento vivido pelo país é o de “democracia militante”, cunhado pelo filósofo alemão Karl Löwenstein (1891-1973). Nessa perspectiva, se as instituições democráticas e liberais não forem capazes de proteger um país contra investidas de alguns líderes eleitos, esses líderes podem usar as próprias regras da democracia para destruir as instituições. “É um debate antigo na Alemanha, desde os anos 1930, e é pertinente no Brasil neste momento”, diz.

O professor da FGV avalia que o Supremo e o TSE estão corretos ao agirem contra ataques do presidente às urnas eletrônicas e à legitimidade das eleições. “As instituições democráticas têm obrigação constitucional de estarem alertas, e o Supremo corretamente está reagindo. É uma democracia que se defende”, afirma.

Outra instituição que pode colocar limites ao Executivo é o Congresso. Apesar de Bolsonaro ter se engajado na eleição dos atuais presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da sua crescente aproximação com o Centrão, Vilhena avalia que o Legislativo não embarcou na “agenda anti-institucional” de Bolsonaro nem validado tudo que o presidente quer.

“O Supremo tem se mostrado vocal e proeminente na defesa da democracia. Senado e a Câmara também têm sido mecanismos importantes de obstrução, mas não tão vocais. O problema no Brasil chama-se Forças Armadas”, afirma Vilhena, apontando a ambiguidade dos militares que dizem respeitar as instituições ao mesmo tempo em que se alinham ao presidente.

Para Teixeira da Silva, da UFRJ, Braga Netto e Augusto Heleno são “muito pouco democráticos” e “figuras nefastas para a democracia e a República”, que deveriam receber “a mais séria punição possível” por ameaçarem as instituições.

Ele avalia que o Brasil enfrenta a sua crise institucional mais grave desde o golpe de 1964, mas há algumas instituições mobilizadas para mostrar que uma tentativa de repetir algo como a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, “custará caro para essas pessoas”. Ele projeta que não há chance de uma “quartelada” como em 1964, mas é possível que haja uma tentativa de realizar algo como o que ocorreu no Congresso americano, com o apoio de policiais militares. “Os tribunais superiores têm agido corretamente. Estamos no caminho de deter um golpe de novo tipo”, diz.

Fonte: Deutsche Welle (DW)