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Por Rafael Moro Martins.

SE ALGUMA VEZ você gastou segundos de sua vida para decidir se compraria uma sopa instantânea da Knorr ou da Arisco, lamentamos dizer que foi perda de tempo. Qualquer que tenha sido a escolha, você comprou um produto da Unilever, uma das 50 gigantes do setor que, juntas, dominam 50% das vendas globais de alimentos industrializados.

Não se sinta tão mal: não interessa às empresas que você saiba que, na verdade, não tem muita escolha apesar da profusão de nomes e marcas na gôndola do supermercado.

“O problema central [dessa concentração de mercado] é que o consumidor desconhece que na verdade não pode escolher”, me disse Maureen Santos, coordenadora de Justiça Socioambiental no Brasil da Fundação Heinrich Boll, uma organização política alemã sem fins lucrativos que se define como “parte da corrente política verde que se desenvolveu em várias partes do mundo nos anos 1970 como uma resposta às tradicionais políticas socialista, liberal e conservadora”.

“Você até escolhe marca diferente entre marcas diferentes, mas compra da mesma empresa. Essa concentração faz com que empresas determinem o que o consumidor vai comprar, e não o contrário. De preço a opções de escolha, tudo é definido por poucas empresas”, ela afirmou.

A concentração no mercado de alimentos é tema de um dos 22 capítulos do “Atlas do Agronegócio”, um documento que terá, pela primeira vez, uma edição brasileira. O relatório será lançado nesta terça-feira no Rio de Janeiro, com um debate mediado por Gregorio Duvivier com participação de Bela Gil.

Pior, a concentração deverá se agravar nos próximos anos.

“Não tem como escapar dela, porque falta regulação no mercado. Ainda que exista o Cade [Conselho Administrativo de Direito Econômico, órgão do governo federal responsável por julgar grandes fusões e impor medidas que em tese preservam alguma concorrência], veja o caso da fusão entre [as gigantes do agrotóxico] Bayer e Monsanto. A nova empresa foi forçada a vender algumas marcas para ter o negócio aprovado, mas quem comprou foi outra grande, a Basf”, lembrou Santos.

Outro ponto a considerar: apesar de metade dele ser dominado por apenas 50 empresas, o mercado de alimentos industrializados é relativamente pouco concentrado em comparação a outros, como o dos agrotóxicos ou de produto de higiene pessoal – desodorantes, por exemplo. Quer você escolha Axe, Rexona ou Dove, estará levando pra casa um produto da Unilever. Não à toa, lembra o Atlas, a companhia declara, em materiais de divulgação, “estar presente em cem por cento dos lares brasileiros”.

70% das compras de uma família são produtos das grandes

Vários dos nomes que constam do ranking dos dez maiores conglomerados alimentícios do mundo (segundo o faturamento registrado em 2016) são familiares aos brasileiros. A começar pela líder do ranking, a Nestlé, que produz de alimentos infantis a chocolates, passando por iogurtes e produtos lácteos.

Da lista também fazem parte a JBS (envolvida na operação Lava Jato e dona de marcas que concorrem entre si como Seara, Friboi e Swift), Kraft Heinz (fabricante do famoso ketchup), Mondelez (atual dona dos chocolates Lacta), Danone (outra gigante dos laticínios) e Unilever (que, além das marcas já citadas, também é dona do amido de milho Maizena, da maionese Hellmann’s, dos sorvetes Kibon e da margarina Becel).

“[O Brasil] É um dos países do mundo onde mais se percebe a concentração de fabricantes de alimentos: entre 60 e 70% das compras de uma família são produzidas por dez grandes empresas, entre elas Unilever, Nestlé, Procter & Gamble (gigante dos produtos de limpeza e higiene, com marcas como Gilette, Oral-B e Ariel), Kraft e Coca-Cola”, informa o Atlas do Agronegócio.

Alguns setores são particularmente oligopolizados. Cervejas, por exemplo: três grandes grupos (Ambev, Heineken e Grupo Petrópolis) controlam 95% do mercado brasileiro.

Não é apenas ao consumidor que a concentração traz problemas.

“Somente em 2015 foram acordadas duas grandes fusões no valor de mais de US$ 100 bilhões. Uma delas foi entre a fabricante de ketchup Heinz e seu concorrente Kraft. A resultante Kraft Heinz Company é a sexta maior empresa de alimentos do mundo. Extensivas estratégias de redução de custos, que incluem o corte de empregos, são esperadas para financiar o negócio e aumentar as ações no mercado e as margens de lucro”, informa o Atlas.

Por trás do negócio está o mais rico brasileiro, o bilionário Jorge Paulo Lemann, modelo de liberais como o presidenciável João Amoêdo, do Partido Novo. O fundo de investimentos 3G Capital, de Lemann, segundo o Atlas, é “conhecido por suas duras medidas de redução de custos” – ou seja, não tem pudores em acabar com empregos em nome da rentabilidade.

Lemann, da 3G, é um sujeito ousado. Em 2017, sua recém-criada Kraft Heinz tentou comprar a Unilever, maior que ela mesma, por US$ 143 bilhões. Ouviu um sonoro “não”. Um ano antes, a Mondelez, que separou-se da Kraft em 2012, fracassou na tentativa de assumir o controle da Hershey, tradicional fabricante de chocolates fundada nos EUA e há alguns anos presente no Brasil. “Essas tentativas fracassadas aumentaram a probabilidade de a Mondelez ser reabsorvida pela Kraft Heinz”, diz outro capítulo do Atlas, especialmente dedicado às estripulias do mega-investidor – que também é dono da AB InBev, resultado de duas outras megafusões após a criação da Ambev, e da cadeia de fast food Burger King.

Trigo, milho e soja: há 100 anos na mão de apenas quatro empresas

Se tudo o que você leu até aqui parece preocupante, experimente dar uma olhada no mercado de commodities agrícolas. Apenas cinco companhias – as norte-americanas Archer Daniels Midland (ADM), Bunge e Cargill, a holandesa Louis Dreyfus e a recém-chegada Cofco, chinesa – dominam o comércio internacional de milho, trigo e soja.

“A situação do mercado, a qualidade e o preços determinam se essas commodities são vendidas como alimentos, agrocombustíveis ou ração para animais”, relata o Atlas do Agronegócio.

Não à toa. Excluída a chinesa Cofco, as quatro restantes “foram fundadas entre 1818 e 1902. Com exceção da ADM, são controladas por suas famílias fundadoras. Comercializam, transportam e processam diversas commodities. Possuem navios oceânicos, portos, ferrovias, refinarias, silos, moinhos e fábricas. Juntas, representam 70% do mercado mundial de commodities agrícolas”, informa o documento da Fundação Heinrich Boll. “Trigo, milho e soja, cabe lembrar, estão na base dos produtos processados e ultraprocessados”, disse Maureen Santos.

Como baixar o Atlas

A edição brasileira do Atlas do Agronegócio toma como base a edição europeia, publicada em 2017 em alemão e inglês.

“Mas metade dela é inédita, com artigos exclusivos de autores brasileiros. Um deles, essencial, trata dos agrotóxicos, por exemplo o glifosato, comprovadamente cancerígeno, que teve a venda novamente liberada pelo Tribunal Regional Federal da 1a. Região”, enumerou Santos, que coordenou a edição local do volume.

O Atlas do Agronegócio pode ser baixado gratuitamente no site da Fundação Heinrich Boll. Quem não mora no Rio de Janeiro também pode pedir para receber o volume impresso em casa, pelo correio, também de graça – cariocas podem retirá-lo na sede da organização.

Fonte: The Intercept Brasil