Usina de Belo Monte: Josué de Castro defendia o desenvolvimento da Amazônia como meio de combate à fome.

Publicado em sua 1ª edição em 1946, Geografia da Fome[1], de Josué de Castro,permanece uma obra atualíssima. O autor, renomado médico, teórico e organizador do combate à fome, foi presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), e também Embaixador brasileiro junto à Organização das Nações Unidas (ONU).

A fome é entendida por ele como um fenômeno social, cujas manifestações específicas, relacionadas ao padrão de alimentação, ocorrem de acordo com a distribuição geográfica e as disposições culturais. Para ele, a fome não é natural, pois é resultado não da escassez do meio, mas de uma estrutura política, econômica e social concentradora de riquezas nas mãos de poucos e desfavorável à satisfação das necessidades das pessoas.

Na contramão do malthusianismo, ele considera que existem recursos naturais suficientes para toda a população brasileira e mundial, e até mesmo para um número maior de pessoas.  Para esses recursos serem aproveitados em benefício de todos, seria necessária uma organização coletiva que colocasse a técnica e o dinheiro a serviço das pessoas e não o contrário.

Ao substituir o princípio da escassez natural pelo da abundância, Josué de Castro inverte o pressuposto básico da ortodoxia econômica e do ambientalismo hegemônico, estabelecida por David Ricardo e Thomas Malthus, e abre horizontes mais promissores de compreensão dos fenômenos sociais e mais generosos de orientação política. A inevitabilidade do egoísmo e da competição por recursos escassos e finitos cede vez à possibilidade de solidariedade e cooperação para a criação de melhores condições materiais para cada vez mais pessoas. A fome, sendo um problema social, não é, para o autor, natural e inevitável, podendo ser solucionada por mudanças na política e na economia que coloquem as pessoas, e não os lucros privados, em primeiro lugar.

Em Geografia da Fome, Josué de Castro estuda, com o máximo de objetividade científica, os padrões alimentares e de fome no Brasil. Em vista das diferenças de recursos naturais e de padrões culturais entre as regiões brasileiras, ele classifica cinco áreas alimentares em nosso País, a saber: Amazônia, Mata do Nordeste, Sertão do Nordeste, Centro-Oeste e Extremo-Sul. As três primeiras são classificadas na obra como áreas de fome e recebem, cada qual, um capítulo à parte. Em todo o País, contudo, “a alimentação do brasileiro tem-se revelado, à luz dos inquéritos sociais realizados, com qualidades nutritivas bem precárias” (p. 42).

Constitui uma das suas preocupações centrais o fato de haver uma realidade social de penúria material generalizada em um País onde a amplíssima extensão territorial e a riqueza e fertilidade dos quadros climato-botânicos proporcionariam as condições para nutrir uma população bem maior que a então existente. Considerando que, em 1940, havia no Brasil 41,2 milhões de habitantes, a densidade demográfica era de 4,84 hab./km². O Brasil era, como, aliás, continua sendo, um país desolado, embora altamente fecundo. A título de comparação, os EUA, nesse mesmo ano, possuíam 132,1 milhões de habitantes com uma densidade de cerca de 13,4 hab./km².

A Amazônia é a primeira região analisada separadamente no livro. A abordagem objetiva e fria de Josué de Castro contrasta flagrantemente com a representação idílica feita por muitos ambientalistas e indigenistas românticos, de um suposto Éden ameaçado pelo “progresso” imposto pelo “homem branco”.

Pelo contrário, o autor descreve o subdesenvolvimento, e mesmo não desenvolvimento, amazônico. Evidencia que a Amazônia é uma região de fome endêmica e, muito por isso, um dos maiores desertos demográficos do mundo. Os seis milhões de habitantes que a Amazônia então possuía, distribuídos em uma proporção irrisória de 0,25 hab./km², viviam de maneira precária do ponto de vista técnico e organizacional. As rarefeitas populações amazônicas, presas a uma economia extrativista de subsistência e isoladas entre si pela falta de vias de transporte, eram incapazes de estabelecer uma colonização apropriada do meio natural para torná-lo favorável à dignidade e ao conforto humanos.

O povoamento amazônico, caracterizado mais pelo heroísmo individual e pela dispersão física que pela organização racional e pela concentração das forças humanas, foi incapaz de assentar bases propícias para a efetiva domesticação do meio. O individualismo da exploração do espaço, próprio da colonização portuguesa no Brasil, resultou em uma estrutura social de “caráter ganglionar e dispersivo, de extrema rarefação” (p. 90). Em consequência, as populações amazônicas foram incapazes de resistir à brutalidade da natureza e tornaram-se, assim, inferiorizadas do ponto de vista alimentar, produtivo e demográfico.

Em suas palavras: “Na alarmante desproporção entre a desmedida extensão das terras amazônicas e a exiguidade de gente, reside a primeira tragédia da região […] Dentro da grandeza impenetrável do meio geográfico, vive este punhado de gente esmagado pelas forças da natureza, sem que possa reagir contra os obstáculos opressores do meio, por falta de recursos técnicos, só alcançáveis com a formação de núcleos demográficos de bem mais acentuada densidade. […] Sem forças suficientes para dominar o meio ambiente, para utilizar as possibilidades da terra, organizando um sistema de economia produtiva, as populações regionais têm vivido até hoje, no Amazonas, quase que exclusivamente num regime de economia destrutiva.” (p. 46).

Assim, não é de surpreender que a alimentação típica da Amazônia como um todo, baseada na farinha de mandioca, fosse escassa e deficiente. Carne, leite, queijo, manteiga, ovos, verduras e frutas estavam quase ou completamente ausentes. As possibilidades agrícolas eram limitadas pelas condições desfavoráveis do solo. A riqueza de peixes não era devidamente aproveitada em razão da falta de uma indústria pesqueira que aumentasse a pesca e industrializasse o produto para poder ser consumido o ano todo e não somente nas épocas favoráveis à pesca. O rebanho era reduzido, havendo apenas 40% da quantidade ideal para alimentar as populações amazônicas, e, além disso, estava concentrado em poucas mãos e em pontos de difícil acesso para o abastecimento dos principais centros populacionais. A introdução do búfalo africano na Ilha de Marajó, uma iniciativa do Estado brasileiro por meio do Instituto Agronômico do Norte, criado em 1939 e posteriormente incorporado à Embrapa, foi uma tentativa, ainda que limitada, de ampliar a criação de gado para fins alimentares.

Havia, por conseguinte, uma grande falta de sais minerais, proteínas e de diversas vitaminas. A falta de cálcio ocasionava uma grande incidência de cáries dentárias, principalmente nas áreas urbanas, e a falta de ferro um tipo específico de anemia, reforçado por verminoses próprias da região. Também era disseminada a prática da geofagia, hábito instintual de ingestão de terra para abastecer o corpo de ferro. A falta de sódio, principalmente entre as populações indígenas, provocava insuficiência supra-renal.

A carência de vários elementos do complexo B, em particular a vitamina B1, levava ao beribéri, cuja epidemia coincidiu com o ciclo da borracha, que tornou a exploração do látex praticamente a única atividade produtiva da região. Bastante comum era a avitominose relativa, “denunciada pela falta de crescimento, pela visão até certo ponto deficiente e, principalmente, pelas perturbações cutâneas; manchas escuras da pele, aumento de suas rugosidades que a transformam num couro grosso e áspero com espículas em torno dos folículos pilosos. São grupos humanos com a pele lembrando o couro do jacaré, seu companheiro de fauna amazônica” (p. 82). Contudo, o raquitismo era incomum por causa da alta insolação na região, o que permitia um nível razoável de vitamina D. O escorbuto também era bastante raro.

Uma das consequências mais dramáticas do não desenvolvimento amazônico descritos pelo autor eram os altos índices de mortalidade da região, em particular da mortalidade infantil. Em Manaus, a cifra alcançava 239 crianças mortas antes do primeiro aniversário para 1000 nascimentos. Índice, como o autor demonstra, muito acima dos EUA (46 por mil), Noruega (36 por mil) e Nova Zelândia (32 por mil) – países onde o Estado empenhava-se em políticas desenvolvimentistas, industrializantes e de integração inter-regional articuladas com políticas de bem-estar social.

A deficiência alimentar também provocava a proliferação de doenças infectuosas como a tuberculose, cuja incidência em Belém era de 250 casos por 100 mil habitantes, cinco vezes maior que em Nova Iorque. Para piorar, a capital paraense disseminava a tuberculose pelo interior amazônico e, se não fazia com maior velocidade, isso se devia à falta de integração e vertebração da região que, por outro lado, isolava grupos populacionais e contribuía para a calamitosa situação social amazônica.

O panorama que Josué de Castro descreve não é o de um mítico equilíbrio entre o homem e a natureza, tão comum no folclore urbano progressista, mas o de conflito de vida e morte entre a vida humana pauperizada, desassistida e dificultada e a natureza implacável e indócil. Entre diminutas e esparsas populações esmagadas pela fome e a vitalidade hostil do meio natural.

A miséria humana por ele descrita origina-se, em sua perspicaz análise, do absoluto não desenvolvimento da região, da falta de recursos populacionais, técnicos e econômicos para o ser humano triunfar sobre a natureza e poder multiplicar-se em meio à abundância. Para o autor, a superação do quadro falimentar descrito exigia um conjunto de políticas de cunho desenvolvimentista que forjassem o que ele chamou de “conquista econômica da Amazônia” (p. 88).

Para ele, o desenvolvimento econômico, se voltado para corrigir os defeitos e injustiças da organização social brasileira e amazônica em particular, seria o remédio para elevar a níveis superiores a alimentação e as condições biológicas das populações dessa região, tanto quanto do País como um todo. A conquista econômica da Amazônia não só demandaria um maior adensamento populacional organizado, como também proveria os meios de subsistência desse maior número de habitantes.

Em suas palavras: “Para melhorar as condições alimentares da área amazônica faz-se necessário todo um programa de transformações econômico-sociais na região. As soluções dos aspectos parciais do problema estão todas ligadas à solução geral de um método de colonização adequado à região. Sem alimentação suficiente e correta a Amazônia será sempre um deserto demográfico. Sem um plano de povoamento racional e de fixação colonizadora do elemento humano à terra nunca se poderá melhorar os recursos da alimentação da região.” (p. 87-88).

Josué de Castro propõe, então, a “estruturação de um plano sistematizado de política alimentar” (p. 261), de âmbito nacional e em consonância com as características locais. Esse plano seria voltado ao aumento e à diversificação da produção de alimentos para o consumo da população. Também teria por objetivo o equilíbrio da produção de alimentos entre as regiões, o que conferiria à Amazônia uma maior colonização agrícola.

Caberia ao Estado coordenar e dirigir esse plano, de forma a impor os interesses da nacionalidade sobre os interesses particularistas. Não se poderia repetir o tipo de exploração ocorrida no ciclo da borracha, quando a ânsia por lucros imediatos pela exportação do látex levou ao abandono de qualquer outra atividade, ao colapso da economia local e a sua subordinação às decisões dos interesses estrangeiros. Toda uma reforma administrativa, em especial no Ministério da Agricultura, seria necessária para dotar o poder público de propósitos sociais e aumentar a eficiência das suas intervenções.

O autor aponta para a necessidade de uma reforma agrária capaz de tornar as terras acessíveis a quem quisesse cultivá-las, desapropriando os imóveis improdutivos e evitando a concentração fundiária, além de fomentar seletivamente os gêneros alimentícios dos quais haveria maior necessidade para um melhor balanço alimentar da sociedade.

Mas não bastaria distribuir terras e selecionar as culturas. Seria imprescindível, do mesmo modo, construir toda uma rede de infraestruturas (transportes, comunicação, drenagem, habitação, saneamento, etc.) para permitir o adensamento demográfico e a integração econômica da Amazônia e dessa com o restante do País, de maneira a conectar as áreas agrícolas aos centros industriais e urbanos e ampliar o comércio interno.

Também seria indispensável promover a mecanização agrícola e introduzir técnicas modernas de acordo com as condições locais, para elevar a produtividade das lavouras, melhorar o uso e a conservação do solo, aprimorar as raças utilizadas na pecuária local, introduzir a avicultura, industrializar frutas e hortaliças. Escavadeiras e valetadeiras eram urgentes na Amazônia para controlar os efeitos danosos causados pelo excesso de água.

Igualmente, a maior produtividade dependeria da provisão de assistência técnica, garantia de preços mínimos e financiamento bancário e tributário aos produtores. O cooperativismo deveria ser estimulado. Investimentos em pesquisas nos ramos de Bromatologia e Nutrologia também seriam fundamentais para a consecução do plano de política alimentar.

Na 5ª edição da obra, de 1957, o autor cita, como exemplo positivo de ação estatal voltada para os objetivos que ele propõe, o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (p. 88), vinculado à Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, criado no segundo governo de Getúlio Vargas.

Infelizmente, a Amazônia segundo Josué de Castro permanece inalterada em essência até os dias de hoje. Mesmo com todas as ações estatais, desde Getúlio Vargas, voltadas para o desenvolvimento da região, ela permanece escassamente povoada, desarticulada internamente e com o resto do País, alheia ao desenvolvimento econômico e suas populações estão entre as mais aviltadas da Nação.

As demarcações indiscriminadas de terras indígenas e unidades de conservação desde a década de 1990, sobretudo em áreas fronteiriças vitais para a integração sul-americana, constituem verdadeiras zonas de desestatização, desantropização e exclusão do desenvolvimento.

As demarcações indiscriminadas de terras indígenas e unidades de conservação desde a década de 1990, sobretudo em áreas fronteiriças vitais para a integração sul-americana, constituem verdadeiras zonas de desestatização, desantropização e exclusão do desenvolvimento. O abandono da região alimenta as práticas econômicas predatórias de cunho neocolonial, como os mais diversos extrativismos, legais e ilegais, frequentemente voltados para a mera exportação, sem passar por nenhuma industrialização doméstica.  O receituário malthusiano de livre-comércio, despovoamento e não industrialização é aplicado à risca na Amazônia. A violência e a degradação social resultantes desse cenário constituem grave ameaça à unidade nacional.

Tanto quanto no lançamento de Geografia da Fome, a Amazônia ainda hoje é uma região a ser conquistada econômica e demograficamente e integrada de fato à comunidade nacional. A superação do deplorável quadro social que ainda hoje se verifica só será possível, como Josué de Castro defendia, com a conjugação dos esforços nacionais, coordenados pelo Estado, para promover o desenvolvimento produtivo, o bem-estar social e o adensamento demográfico. Sem, evidentemente, descuidar da necessária proteção ambiental e da preservação das tradições indígenas, definidas a partir de dentro do nosso País e de acordo com a realidade brasileira e as aspirações do nosso Povo, e não de forma imposta por Estados e corporações estrangeiros cujos interesses na Amazônia não se coadunam com a nossa soberania e com os nossos objetivos. Em resumo, a concepção de Amazônia proposta pelo autor é oposta a do malthusianismo vigente.

A mensagem de Josué de Castro permanece, por conseguinte, atual. É preciso retirá-la do esquecimento a que foi relegada nas últimas décadas e reincorporá-la ao primeiro plano do cabedal científico e político do nosso País. Assim, voltará a suscitar reflexões e intervenções que considerem a Amazônia, com o seu gigantismo territorial e suas enormes potencialidades econômicas, a base física sobre a qual pode se constituir uma pujante, numerosa e generosa Civilização Brasileira.


[1] A edição utilizada para o registro das páginas é a 5ª, de 1957. Editora Brasiliense – São Paulo-SP.

Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Transcrito do site Bonifácio