Por Letycia Holanda para o Brasil de Fato – Foto Douglas Mansur

Importação de máquinas chinesas e construção de biofábricas no Brasil estão nos planos de curto e médio prazo

‘MST é um híbrido de uma instituição que ainda não existe, mas que ainda vai existir no futuro’

“Muito mais do que um movimento, o MST é um híbrido de uma instituição que ainda não existe, mas que ainda vai existir no futuro”, afirma o geógrafo Bernardo Mançano, autor do livro ‘A formação do MST no Brasil’, entre outros, e pesquisador da entidade desde o início.

Na primeira edição do ano, o podcast Três por Quatro, do Brasil de Fato, celebra os 40 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dedicando um episódio para discutir a história do movimento e a sua relevância para a geopolítica brasileira.

Fundado em 1984, o MST se tornou emblemático na história recente do Brasil, sendo protagonista de importantes conquistas na área da reforma agrária. “O MST é resultado dessa indignação do povo camponês e da vontade política de se organizarem, para resolver os seus problemas no interior”, explica o comentarista João Pedro Stédile, liderança do movimento.

Hoje, o grupo já está organizado em 24 estados brasileiros, com mais de 400 mil famílias assentadas e cerca de 70 mil acampadas. Mas, Stédile lembra que a luta começou lá no século XX, durante a redemocratização do país, entre 1970 e 1980. “O MST foi se constituindo pela eclosão de diversas ocupações de terra, por camponeses, ao longo de todo território.”

A princípio o movimento surge pela necessidade das famílias em extrema pobreza, “diante da crise capitalista que tinha diminuído emprego na cidade e diante das más notícias que chegaram dos que tinham ido colonizar a Amazônia”, lembra Stédile.

Ao podcast Três por Quatro, o geógrafo Bernardo Mançano destaca a importância do MST para a democracia brasileira: “movimentos que lutam contra a desigualdade, que lutam pela terra, pela reforma agrária, pela educação, pela saúde, pela comida saudável. Esses movimentos só conseguem existir em um regime democrático”.

Na sua visão, hoje, a própria existência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é um indicador de democracia. “Muita gente acredita que a reforma agrária é uma política do passado, e na verdade a reforma agrária é uma política que nunca sai de pauta”, afirma Mançano.

O primeiro congresso do MST aconteceu em janeiro de 1985, em Cascavel, no Paraná, fruto das primeiras ações mais organizadas no Rio Grande do Sul, como por exemplo, “a Granja Macali e, alguns meses depois, a Granja Brilhante”, recorda Stédile, que também destaca o caso da Fazenda Annoni.

“A notícia da ocupação causou o pandemônio, em plena ditadura, 200 famílias ocupam uma fazenda na região Sarandi (RS) […] “E isso serviu também com a proteção, porque o governo do estado, diante da repercussão na imprensa e na sociedade, não teve condições políticas de imediatamente ir lá e despejar.”

Desde então, ocupações organizadas pelo movimento pipocaram por todo o país. “Saímos com a missão de preparar o que seria o nosso primeiro congresso”, afirma.

Disputas com o agronegócio

Para a liderança do MST, o movimento amadureceu a sua relação com o agronegócio. “Nós construímos um novo conceito que nós chamamos agora de ‘Reforma Agrária Popular’ para se contrapor aquela ideia genérica da reforma agrária clássica que era só desapropriar e entregar a terra para os pobres”.

Stédile explica que o atual modelo de agricultura organiza grandes latifúndios de forma predatória, com alta tecnologia, mecanização, sementes transgênicas e agrotóxicos para a produção de commodities para exportação.

Outro modelo seria o agronegócio que “produz riqueza, que se apropria de maneira concentrada, não desenvolve a região e não emprega as pessoas. Pior, a agressão da natureza é feita de uma maneira muito mais sofisticada que é o uso do agrotóxico”, explica.

A liderança do MST aponta que a luta do movimento é substituir esses dois modelos, por um “um modelo que seja sustentável, um modelo que produz alimentos saudáveis, baseado na agroecologia”.

O professor e pesquisador da UNESP completa: “a reforma agrária não é somente uma política de Estado, a reforma agrária é uma política da sociedade”. Segundo ele, “a reforma agrária, hoje é um caminho para mudança desse modelo de desenvolvimento predatório”.

Laços estreitos com a China

Em primeira mão ao Brasil de Fato, a liderança do Movimento anuncia o acordo entre o MST e o governo da China, para a importação de tecnologia agrícola.

“No próximo dia 2, sexta-feira que vem, nós estaremos recebendo formalmente 33 máquinas para camponeses que o governo da China está nos doando. […] Essas máquinas serão entregues para a secretaria da agricultura do Rio Grande do Norte e serão transferidas para camponeses testarem nos próximos meses.”

João Pedro Stédile também adianta os planos para a construção de biofábricas no Brasil. “Fizemos uma parceria que envolve a Prefeitura de São Leopoldo no Rio Grande do Sul, e nós vamos então construir a primeira biofábrica ainda esse ano para aproveitar os resíduos da cidade […] E o nosso objetivo, então, é produzir fertilizante orgânico que nós vamos usar no arroz agroecológico.”

Atualmente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) colabora diretamente com a Universidade Agrícola da China, entre outras entidades, para tentar entender o avanço do país em relação à agricultura para tirar a sua população da extrema pobreza.

“Tendo conhecimento dessa tecnologia e a disposição do governo chinês em repassar, e não só vender. Nós estamos construindo então agora o próximo passo é que é como trazer essas fábricas aqui para o Brasil”, comenta Stédile.

A imagem do MST hoje

Em uma estimativa simples, segundo a média nacional de 2,79 de pessoas por residência constatada pelo Censo de 2022, ao menos 1,3 milhão de pessoas são integrantes e vivem em territórios organizados pelo MST.

“De todas as instituições que eu conheço é a instituição que tem promovido mais mudanças é o MST”, afirma o geógrafo e pesquisador do movimento, Bernardo Mançano. Segundo ele, no aniversário de 40 anos do MST, o grupo ajudou a melhorar a qualidade de vida de muitos brasileiros. “Elas têm moradia. Elas têm trabalho. Elas têm comida. Elas têm educação. Elas têm saúde e elas têm tudo isso por uma única razão, porque elas têm território que é onde elas se realizam”.

“A cara do MST está expressa nas fotografias, está expressa nas paisagens que a gente vê sobre os territórios. A cara do MST é a cara da diversidade, a cara do MST é a cara da inclusão […]. Essa é a cara do MST.”

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país.