Ao esconder dados da doença, Bolsonaro tenta criar confusão entre a população e reduzir verdade factual a uma mera questão de opinião. No exterior, tática deve abalar acordo Mercosul-UE e obtenção de vaga na OCDE.

Segundo especialista, manipular ou desacreditar dados é o “modus operandi” do governo. Bolsonaro já contestou números de desmatamento e tentou reduzir alcance da Lei de Acesso à Informação

As mudanças adotadas pelo governo brasileiro na metodologia para contagem de infectados e mortos pela covid-19 fazem parte de uma estratégia do governo Jair Bolsonaro para confundir a população e reduzir o valor da verdade factual nas decisões políticas.

Esse comportamento afeta a confiança de outros países nos dados produzidos pelo governo brasileiro e prejudica iniciativas de projeção global do Brasil, como a tentativa de se tornar um membro da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e garantir a aprovação do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, avaliam especialistas ouvidos pela DW Brasil.

Na sexta-feira (05/06), o governo passou a esconder o número total de mortes e de casos da doença, e anunciou que as divulgações diárias passariam a contabilizar apenas as mortes por covid-19 ocorridas nas últimas 24 horas. A nova regra deixaria de fora mortes ocorridas em dias anteriores, mas cujo diagnóstico de covid-19 havia sido confirmado nas últimas 24 horas, reduzindo artificialmente o número de vítimas da doença.

Após reações negativas de entidades de saúde, políticos e integrantes do Judiciário, o governo anunciou nesta segunda-feira (08/06) que voltaria a publicar informações detalhadas em um novo portal da internet. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o governo volte a divulgar os dados totais como vinha ocorrendo até a semana passada. Ainda assim, persiste uma desconfiança sobre manipulação dos dados relativos à doença, cuja divulgação já vinha sendo dificultada nas últimas por outras medidas de redução da transparência.

Segundo reportagem publicada pelo jornal Valor, militares em cargos estratégicos no Ministério da Saúde têm pressionado técnicos da pasta a maquiar os dados sobre a doença no país. Já o jornal O Estado de S. Paulo apurou que a mudança nas regras para a contagem de vítimas da covid-19 ocorreu após o presidente Jair Bolsonaro determinar que o número de mortes pela doença ficasse abaixo de mil por dia.

Nesta segunda-feira, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, afirmou em seu Twitter: “A manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários. Tenta-se ocultar os números da #COVID19 para reduzir o controle social das políticas de saúde. O truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio”.

Estratégia pensada

Após a mudança de metodologia, os dados sobre o Brasil ficaram, por algumas horas do sábado (06/06), fora do painel organizado pela Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, uma das referências mundiais no acompanhamento da pandemia.

Filipe Campante, professor de economia internacional da Johns Hopkins, afirma à DW Brasil que as mudanças na contagem de casos determinadas pelo governo têm dois objetivos. Um, mais superficial, é “esconder a realidade e a extensão do impacto da pandemia no Brasil”. O outro se insere na estratégia política de Bolsonaro, que seria poluir o ambiente de informação para confundir o público e enfraquecer a importância da verdade factual como guia para a definição das políticas públicas.

“Mais do que tentar convencer as pessoas [que a pandemia está sob controle], a ideia do governo é criar confusão, criar a sensação de que a verdade é inalcançável e que tudo se trata de opinião e interesses políticos, para que as pessoas pensem: ‘Ninguém sabe muito bem o que está acontecendo. O governo está manipulando, mas o outro lado – quem quer que seja o outro lado – está manipulando também. Então é melhor nem tentar entender'”, diz.

Segundo Campante, essa estratégia é adotada por outros presidentes de perfil populista e também é observada na Rússia liderada por Vladimir Putin. “A informação é manipulada não para convencer alguém, mas para criar essa sensação de que a verdade não existe”, afirma.

A existência de suspeitas sobre manipulação e ocultação de dados não é algo novo no governo Bolsonaro, mas sim um “modus operandi” de sua gestão, diz Campante. Houve problemas semelhantes em 2019 com os dados de desmatamento da Amazônia, além de tentativas de o governo reduzir o alcance da Lei de Acesso à Informação, posteriormente revogadas por decisões do Congresso e do Supremo.

Risco às instituições

A alteração da metodologia para contagem de casos da covid-19 terá impactos não só para o combate adequado à pandemia, mas também na reputação dos dados produzidos pelo governo brasileiro como um todo, pois “ilustra um grau extremamente grave de comprometimento das instituições do estado”, afirma o professor da Johns Hopkins.

Ele lembra um exemplo ocorrido na Argentina há menos de uma década, quando o país começou a manipular seus números da inflação – algo “semelhante em espírito e método” ao que tenta o governo federal com a covid-19, diz. Como resultado, o Fundo Monetário Internacional deixou de incluir os dados da Argentina em seus boletins por falta de confiança nos dados.

Bruno Brandão, diretor-executivo da seção brasileira da organização Transparência Internacional, também cita a redução da confiança da comunidade global nos dados brasileiros como efeito colateral das alterações na metodologia sobre a covid-19.

“Um dos pressupostos para a inserção internacional de um país é a confiança que ele projeta nos seus pares e na comunidade internacional, e isso vem a partir da transparência. Quando há ocultação ou manipulação de informação, isso gera desconfiança, afasta o país dos processos internacionais e prejudica a credibilidade do país frente à comunidade internacional”, diz.

Brandão avalia que a desconfiança sobre os dados brasileiros reduz a chance de o país ser aceito como membro da OCDE, uma meta do governo Bolsonaro. “O principal objetivo da OCDE é a melhoria e o estabelecimento de padrões de políticas públicas. Quando um país começa a ter uma agenda própria, uma agenda desviante do padrão internacional que preza pela transparência e confiança, isso certamente é prejudicial à sua candidatura”, diz.

Da mesma maneira, o diretor da Transparência Internacional projeta maior dificuldade para a efetivação do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, que ainda depende da ratificação dos países-membros do bloco europeu. “Na situação atual, as atitudes do governo brasileiro a respeito da agenda ambiental e da pandemia provocam um ambiente político muito desfavorável à aprovação desses acordos, com implicações econômicas muito reais e concretas para o Brasil”, afirma.

Ele lembra que o acordo estabelece regras sobre transparência e sustentabilidade, mas que a fase final de avaliação do tratado não diz respeito ao conteúdo em si do texto, e sim à discussão política sobre sua conveniência. À sensibilidade de parlamentos de países europeus sobre a questão ambiental, se soma agora a preocupação com os dados da pandemia, “que também são de interesse da comunidade internacional”.

Nesta segunda-feira (08/06), a Organização Mundial de Saúde (OMS) se manifestou sobre o Brasil, afirmando que considera “muito importante que mensagens sobre transparência sejam consistentes, para que possamos confiar nos nossos parceiros”, e que espera que “qualquer confusão possa ser resolvida agora, e que o governo e os Estados possam continuar fornecendo dados de forma consistente para seus cidadãos”.

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