Por Rose de Almeida, jornalista

Tenho andado muito estranha ultimamente.

E também sumida das redes sociais.

Até o telefone tenho deixado desligado e esquecido num canto qualquer.

Nos primeiros dias no Brasil, este silêncio foi necessário para absorver bem os beijos e abraços de saudade dos familiares, para acomodar os carinhos há tanto tempo desejados, para me deixar ficar no aconchego de memórias tão vivas quanto fundamentais para viver bem.

Se dentro das quatro paredes da casa da minha mãe e de onde estamos alojados nestes primeiros dias há conforto, silêncio, saúde e fartura de amor, de comida e de segurança, no mundo que há lá fora o cenário de aridez é bem diferente.

Não tenho reconhecido a cidade que deixei há quase três anos. Nem meu bairro se parece com o lugar tranquilo, arborizado e seguro de tempos atrás. O casario vizinho ao meu ex-prédio no Brooklin é hoje um quarteirão aniquilado à espera de duas torres de 36 andares. A cabeleireira que durante anos cortou meu cabelo joãozinho sumiu e no lugar há uma badalada loja de roupas femininas. Por outro lado, a minha lojinha preferida de modelitos elegantes e vestidos tubinho agora é uma espalhafatosa farmácia que se juntou a mais 8 numa área de três quarteirões.

A banca de revistas do sr. Nelson também não é a mesma. Ele continua por lá mas já não fica o dia todo. Aquele montão de títulos de revistas, jornais, caça-palavras, colecionáveis e figurinhas sumiram. Ver a banca fechada durante uns 3 dias seguidos, em horários diferentes, me fez pensar o pior. Felizmente o sr. Nelson resiste, mas sua banca não e deixa um vazio nas minhas lembranças.

Apesar de muitas lojas fechadas, de incontáveis placas de aluga-se e vende-se nas janelas dos apartamentos da região, mais e mais obras prometem edifícios suntuosos, condomínios repletos de diferenciais e prédios cada vez mais altos. Tem gente pra morar em todos esses lugares? E dinheiro para bancar todas estas construtoras? E os moradores de rua que se multiplicam em todo canto da cidade, haverá moradia digna também para eles?

Os sentimentos se misturam ao andar pela cidade. Nesses 20 dias por aqui, até o clima parece estar em compasso de espera. Cadê o verão que sempre aparece depois do feriado de Finados? Minha mala repleta de camisetas-regata, vestidos de alcinha e sandálias continua fechada à espera de sol e calor.

Quem me conhece sabe que gosto do centro da cidade, que ando por lá desde menina e que cada cantinho do quadrilátero entre Praça da Sé, Mercadão, rua Direita, São Bento, Santa Ifigênia e República tem um pouco da minha história, tem espaço privilegiado no meu coração.

Pois pela primeira vez senti medo em caminhar por suas ruas, e não é só porque me levaram semana passada, com um puxão, as correntinhas que tinha ao pescoço. É porque a dignidade que eu sentia existir na simplicidade daquela região, não vive mais por lá.

Algumas lojas da minha memória ainda estão, mas a humildade dos trabalhadores do comércio popular está debilitada. A imponência da arquitetura neoclássica da rua 15 de novembro ainda está, mas aos seus pés famílias inteiras amontoam seus poucos pertences.

A majestosa Catedral da Sé, que à sua frente tinha uma alameda de palmeiras imperiais, agora também divide o marco zero da cidade com barracas de indigentes, menores infratores, drogados, sem abrigo, desvalidos pela vida e pelos governos.

Eu não choro com estas cenas mas meu coração sangra em ver esta situação. A que ponto chegamos? Não xinguei o menino que roubou a correntinha. Pedi que a medalhinha de Nossa Senhora que ele levou o abençoe e seja um sinal de que ele merece e pode mudar de vida. Lamentei que se foi um colarzinho que o Cascão me deu em nosso aniversário de dez anos de casados. Daí lembrei que vivemos mais vinte anos depois daqueles primeiros dez e que não é uma correntinha que determina a felicidade que sentimos com a companhia um do outro.

Eu sei, não devia ter ido com as correntinhas, mas quem se lembra de ter cuidado quando se está em casa?

Engraçado é que também me levaram umas correntinhas do pescoço quando eu tinha uns 12 anos e voltava para casa na rua Washington Luis, depois de levar minha tia na rodoviária que ficava em frente a Sala São Paulo, naquele tempo em que a cobertura colorida da estação era uma atração na região central.

Batizada de cracolândia, eu morei lá uns bons anos, transitei entre a Cásper Líbero e a Vieira de Carvalho com a desenvoltura de quem conhece o próprio bairro. Hoje tenho medo de passar por lá e também sinto a insegurança sugando minhas energias.

Eu sei, teve eclipse semana passada e posso estar mais sensível por conta da lua. Eu confio na vibração da vida, nos bons pensamentos, não sou de desesperar e costumo ver sempre o lado bom das coisas.

Entretanto, sentir medo e decepção é fraquejar na fé, é perder a conexão com o divino, é duvidar que tudo está como deve ser. E me deixar vencer por estes pensamentos é uma sensação muito estranha. Tenho andado calada, escondida, acuada, como se minha alegria e felicidade fossem um ultraje ao que vejo pela cidade.

Eu me sinto responsável, me sinto parte e me sinto impotente pela situação. Acho que é a isso que chamam empatia. Neste momento eu só posso rezar, meditar e vibrar em frequência altíssima para tentar sobrepor esta baixa energia do entorno. As pessoas que tenho encontrado também andam angustiadas. Em vez de diálogos, tenho ouvido monólogos, gente querendo colocar pra fora seus medos e inseguranças. Falando pelos cotovelos para evitar o silêncio de suas reflexões mais profundas.

Tem sido difícil manter-me presente aqui e agora quando o que eu mais queria era estar caminhando beirando o Tejo e me sentindo em unidade com o imenso céu português.

Mas, se me cabe estar no meu país agora, é porque sou necessária aqui e desta minha presença deve surgir um propósito e uma missão a ser cumprida.

Em quinze dias celebrarei a festa de formatura da minha filha Sofia Costa, prorrogada em um ano por conta da pandemia. Dançarei como dancei na formatura da Marina Costa Godoy pra compensar também a falta de festa de formatura da Olívia Costa formada no meio de 2020 e também sem cerimônia das fitas em Portugal por conta do lockdown.

Festejar faz bem, dançar até os pés doerem faz bem, gargalhar ilumina a vida, abraçar a família orgulhosa pela etapa vencida pelos filhos é entender que a vida segue seu curso, sempre.

E talvez sorrir, cantar, escrever e conversar seja minha melhor contribuição para este mundo. Porque cada um dá o que tem e o que eu posso dar é amor.