José de Jesus Barreto

Valdirene era seu nome. Tinha só 17 anos, uma barriga de quatro meses e deixou uma filhinha de dois anos, só Deus sabe pra quem criar e o que fazer dela. Val morreu na madrugada de um feriado, com um tiro no pescoço, quando saía com duas amigas de um ‘paredão’ no Quingoma, interiores de Lauro de Freitas, RMS.
Bala perdida? Que nada ! Perdeu a vida distraída, num meio de uma troca de tiros entre jovens integrantes de duas facções rivais, disputa de tráfico entre grupos de bairro que ela conhecia muito bem. Uma bala só, certeira, errada, somente ela foi atingida, o corpo caindo e ainda estremelicando no chão de barro, correria pra todo canto, espanto e medo, a polícia só veio aparecer com o sol claro e o rabecão só recolheu o cadáver no meio da tarde, revolta geral, pneus queimados e a pergunta no ar, sem resposta: Quem afinal deu o tiro que matou Val? De onde partiu a desgraça daquela bala fatal?
*
A cabeça da mulata esguia que queria ser modelo, de tão bonita que era, restou numa poça de sangue e lama, os cabelos encaracolados encobrindo o lado da face enterrada no chão, o corpo de bruços, shortinho jeans curto, as cobiçadas pernas expostas, a sandália vermelha de salto alto num pé, apenas, torto prum lado.
– Não era pra ela !, chorava a amiga que a acompanhava. ‘Não, ela não merecia!’, dizia outra. Eram tantos os lamentos em torno da guria de riso encantador, esperta, inteligente, querida por todos.
Val tinha ares de princesa. Formosa, desde pequenina gostava de tudo chique, só punha a cara fora do barraco toda arrumadinha, com batom, brincos, os panos combinando com bom gosto, pisando na ponta dos pés, sem espalhafatos, uma gata. Faltava-lhe estudo, boa escola, escrevia com dificuldade, pronunciava algumas palavras errado, mas se comunicava bem e tinha muita facilidade com contas, números, dinheiro, compra e venda… se virava.
*
O pai abandonara a família quando ela ainda era pequena, com duas irmãs menores; a mãe, uma tonta, se picou no mundo com outro homem, deixando-a só no barraco da vó, lavadeira de roupas, uma velhinha escrota que não lhe dava muita corda nem assunto.
Ali mesmo no beco/avenida onde morava amancebou-se com um rapaz de 20 anos, Beto, bonitinho, que morava com a mãe e se virava vendendo drogas: papelotes, pedras, trouxinhas pro baseado, essas coisas triviais de seu meio e infância.
Deu o cabaço a ele, não por amor, mas por interesse e empoderamento. O rapaz tinha uma moto, andava nos trinques, armado e era respeitado na vizinhança.
A troco da virgindade ganhou dele um ‘aifone’, daqueles que fazem tudo. Logo, logo estava uma expert no aparelhinho que não largava nem na hora do banho. Emprenhou dele ‘de boa’ aos 14 anos e nas intimidades também aprendeu a manusear uma pistola niquelada que às vezes exibia em selfies, nas redes. Costumava sair junto com Beto, mesmo de barriga, mesmo depois de nascida a filhinha Sofia, para paradas e paredões. A barriga e a filhota ajudavam a disfarçar a prática dos ilícitos.
Por exibicionismo e ousadia nas paradas, a dupla ficou marcada e de certo modo encurralada pela polícia, de um lado, no encalço, e pelas facções rivais. Já não podiam frequentar outros bairros, ameaçados de porrada e até de morte. Um dia, na rua com Sophia de braço, ela ouviu: ‘Avisa a seu parceiro que não ponha os pés lá no Portão. O pessoal lá vai detonar ele, se aparecer. E tá valendo pra você também, cuidado com essa menina aí, viu?’
Bateu medo. Semanas depois a polícia meteu o pé na porta do barraco, estavam nús, e arrastou Beto de cueca pra responder por um assalto a mão armada, na delegacia. Tinha mesmo culpa no cartório, porque nunca mais voltou. De lá foi para a Lemos de Brito. Val só se comunicava com ele via celular, pelo zap, uma ou duas vezes por semana, com a cobertura da sogra.
Mas pensa que ela mudou, se encolheu, tomou juízo? Quá ! Não arrefeceu a vontade de andar nos trinques, de possuir, de comprar … e quando soube que Beto tomou uma surra dos desafetos de Portão lá dentro da penitenciária, que viu no zap a foto dele todo quebrado, decidiu ir pessoalmente tirar satisfações ao chefão do bairro rival, levando nos braços como garantia de imunidade a filha Sofia, um encanto de criatura de Deus.
Nada lhe aconteceu de ruim, como se imaginava, mas o chefão rival de Portão gamou nela, apaixonou-se por Val, agradou Sofia, deu-lhe um cordão de ouro que trazia no pescoço, prometeu-lhe mais presentes, uma vida boa e … a menina Val, ambiciosa como ela só, caiu na arapuca, emprenhou dele e, já esquecida de Beto, rolava toda serelepe da vida, nas baladas, nas novas paradas, sentindo-se ‘poderosa’.
Até aquela bala maldita, que lhe varou o pescoço naquela noite quente, no Quingoma. Tinha de ir lá, queria se mostrar, ver a turma toda, quebrar um pouco… Mas, de que lado teria partido aquele tiro ? E Sofia, que será dela, quem vai criá-la, quem cuidará da menina e de seu futuro?
*
Val perdeu a luz. Agora não passa de um número a mais no BO da polícia, um acréscimo nos dados estatísticos que mostram a Bahia como um dos Estados do Brasil onde mais morrem assassinados a bala os jovens pobres, de pele negra e marrom, sem família, sem educação, sem emprego e sem moradia digna.
Até quando?