Em uma entrevista ao canal de televisão MSNBC, concedida em 27 de janeiro, a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez falou sem filtros sobre a sua maior preocupação atual: “Há simpatizantes da ideia de supremacia branca no coração da convenção republicana na Câmara dos Representantes”.

Para Cortez, a questão racial deixou de estar atrelada a uma parte do governo ou a um determinado mandato e se tornou um movimento que usa as instituições como ferramenta política.

A crescente insatisfação popular com o assunto valida a denúncia da deputada democrata. Uma pesquisa conduzida pela agência Gallup mostrou que 40% dos adultos no país estavam descontentes com o tratamento racial no ano de 2020. Em 2018, essa parcela era de 37% e, em 2016, de 23%.

Para o sociólogo Joe Feagin, professor da Texas A&M University, e autor de livros como “The White Racial Frame”, a ideologia da supremacia branca é um produto direto da escravidão.

“Quando os primeiros chegaram a esse país, por volta de 1619, estabeleceu-se uma visão de mundo que permitia a segregação e a escravidão sem causar danos à consciência de cristãos e pessoas de valor. Era preciso colocar os brancos como uma raça superior em todos os sentidos”, explica ao Brasil de Fato.

“Então nós brancos trabalhávamos mais pesado, éramos mais inteligentes e tínhamos uma melhor civilização”.

Foi a reprodução incansável desse discurso, entre brancos e não-brancos, que escreveu a história dos Estados Unidos: “Tivemos 82% da nossa história marcada por uma opressão racial extrema. 60% pela escravidão e outros 22% pela segregação”, diz Feagin.

Mesmo com toda essa bagagem de desigualdade, era de se esperar que após a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente afro-americano a chegar à Casa Branca, em 2008, as coisas mudassem nos Estados Unidos. Em vez disso, Donald Trump, um republicano branco, de ideias conservadoras e fala alinhada à supremacia branca, foi eleito para comandar o país em 2016.

Essa transição brusca e abrupta não surpreendeu a socióloga Leslie Picca, professora da University of Dayton e autora do livro “Two-Faced Racism”: “Historicamente, os Estados Unidos é um país que dá dois passos progressistas, e então dá três passos para trás.

Tivemos, por exemplo, um grande movimento de direitos humanos depois da Guerra Civil, e na sequência passamos a lidar com o encarceramento em massa de pessoas não-brancas. A eleição de Trump, na esteira de um governo mais progressista, não é nenhuma surpresa, portanto”, afirma.

Já para aqueles que se sentiram pegos de surpresa por essa tendência “pêndulo” da política americana, sobretudo na questão da supremacia branca, Picca relembra que ela nunca desapareceu, apenas mudou ao longo da história.

“Nós não temos mais bebedouros separados ou lugares demarcados em ônibus, mas nossa linguagem e nossas políticas são moldadas às pessoas brancas. Então, quando dizem coisas como ‘não importa se você é branco, preto ou colorido, somos todos da raça humana'”, diz Picca.

“A verdade é que, na maioria das vezes, esse ‘daltonismo linguístico’ só beneficia um lado. Nós ignoramos a raça, contanto que você se vista como eu, abrace meus valores, estude as minhas matérias e reze como eu”, pontua à reportagem do Brasil de Fato.

As marcas da manutenção histórica da supremacia branca estão espalhadas na economia, na sociedade e até na geografia americana, conforme comprova a professora Picca em estudo. “Estamos avaliando o legado da política Redlining, de 1930.

Eram mapas que bancos e companhias de financiamento usavam para determinar quem tinha acesso e quem não tinha acesso ao financiamento imobiliário na época. Essa prática era flexível com quem poderia aderir à branquitude, como os italianos, irlandeses e alemães, mas não perdoava indivíduos de ascendência asiática, indígena, africana”, diz.

Situação parecida é reproduzida nas regras atuais de imigração dos Estados Unidos. “Temos muitos canadenses ilegais. Temos muitos israelenses ilegais. Temos muitos imigrantes europeus ilegais. Ninguém quer mandá-los para casa. Ninguém fala deles como membros de gangue e estupradores”, confirma o professor Joe Feagin.

O docente pondera, porém, que a população não-branca, ao escolher viver em áreas concentradas, seja por questões históricas ou atuais, acaba se organizando politicamente e consegue uma maior expressividade.

Feagin usa a Califórnia como exemplo: “O estado era extremamente conservador na década de 1960 e brancos dominavam tudo, de A a Z. Mas agora a Califórnia é talvez o estado mais liberal dos Estados Unidos. Por quê? Eleitores não-brancos. Sobretudo os latino-americanos e latino-americanos negros”.

De fato, a população afro-americana compõe 12% do eleitorado local, enquanto os latinos representam 13%. No entanto, a maioria dos eleitores é branca: 67%.

A ativista Stacey Abrams teve papel decisivo na eleição de Joe Biden no estado da Geórgia / AFP

Não é à toa, portanto, que a acirrada disputa presidencial entre Hillary Clinton e Donald Trump, no ano de 2016, foi marcada pela polêmica da Cambridge Analytica, que usou as redes sociais para desencorajar pessoas não-brancas a votar em estados-chave.

Na última corrida presidencial, que teve palco em 2020, a vitória de Joe Biden se deve muito ao empenho da população negra, especialmente na Geórgia, onde a ativista afro-americana Stacey Abrams liderou uma série de campanhas incentivando essa parcela da população a exercer o seu direito democrático.

Enquanto grupos de pessoas não-brancas se organizam política e socialmente, o professor Feagin espera que o governo Biden não faça vista grossa às ações de supremacistas brancos.

“Pessoas que cometem ações terroristas – e aqui ‘ação’ é a palavra central – têm que ser punidas de forma tão severa quanto aquelas envolvidas no 11 de setembro. Então quem invadiu o Capitólio tem que ser condenado como um terrorista, porque eles atacaram violentamente uma instituição democrática americana”.

 

Fonte: Brasil de Fato