Na comunidade maranhense de Piquiá de Baixo, dentro da Amazônia Oriental, 312 famílias aguardavam atentas pelo discurso de Bolsonaro aos dirigentes da Organização das Nações Unidas (ONU), nesta terça-feira (22).

A expectativa existia porque, em dezembro de 2019, elas receberam a visita do então relator especial do órgão para avaliar os efeitos da mineração na comunidade, com os resultados do encontro publicados em um relatório um dia antes da fala do presidente. As famílias aguardam uma resolução para seus problemas. Mas com o discurso, a decepção.

“Por que ele não faz igual o relator da ONU, que veio, viu, sentiu todo o sofrimento que a comunidade passa? Ele sentiu o pó de ferro no chão, o pó de carvão, percebeu no fôlego,  aquele cheiro horrível”, lamentou a moradora Francisca Sousa, a dona Tida, à reportagem do Brasil de Fato.

Briga antiga

No relatório, Piquiá de Baixo foi citada como uma clara violação de direitos à vida, saúde e informação, além de revelar uma “história incrível da coesão e da resiliência de uma comunidade na luta pelos seus direitos”. O órgão pede que o governo brasileiro, a Vale e as outras empresas implicadas garantam os recursos necessários para reassentamento das famílias e apresentem uma desculpa oficial à comunidade, acompanhada de medidas de reparação aos titulares dos direitos.

Localizada no município de Açailândia (MA), a comunidade onde vivem cerca de 1.100 pessoas chamou a atenção da ONU por sentir os impactos da indústria de mineração e siderurgia desde a década de 1970. É de lá que empresas ligadas à Vale descarregam e transportam diariamente minério de ferro e lingotes de ferro-gusa, o que ao longo dos anos, traz para a população poluição do ar, auditiva, da água e do solo.

Desde a chegada das empresas os moradores denunciam doenças respiratórias, oftalmológicas e dermatológicas, queimaduras graves e fatais, dificuldades de acesso aos serviços de saúde, ausência de infraestrutura básica, falta de acesso à informação, risco à liberdade de expressão, dentre outros.

Entre as recomendações feitas ao governo brasileiro, estão melhorar a responsabilização, o acesso à justiça e um recurso eficaz para as vítimas; garantir a disponibilização dos recursos necessários para o reassentamento da comunidade de Piquiá de Baixo em coordenação com a Vale e outras empresas envolvidas e a emissão de um pedido de desculpas formal pelo governo, pela Vale e por outras empresas envolvidas; e a garantia de acesso à justiça e disposições legais de informação ao público sobre os impactos à saúde e ao meio ambiente; além de reparação a todas as famílias.

Reassentamento

Atualmente, as famílias aguardam a conclusão do reassentamento pelo qual lutam há mais de dez anos, como parte de um plano maior de reparação integral pelos danos sofridos. A assinatura do contrato para o projeto de reassentamento foi feita em 6 de maio de 2016, por representantes da Associação Comunitária dos Moradores de Piquiá (ACMP), na presença da então presidente Dilma Rousseff, mas as obras começaram, de fato, só em novembro de 2018.

Com o esforço da ACMP, articulação internacional e regional, os moradores de Piquiá de Baixo conquistaram a propriedade definitiva do terreno para o reassentamento e construíram, com o apoio de uma assessoria técnicabancada com recursos das siderúrgicas, o plano urbanístico do novo bairro do Piquiá da Conquista.

O arranjo financeiro para o custeio das obras, avaliadas em mais de R$ 29 milhões, foi garantido com aportes da Caixa Econômica Federal (CEF), por meio do programa federal Minha Casa Minha Vida, sendo que do valor total somente R$ 2 milhões e 130 mil (7,5%) foram aportados pelas empresas siderúrgicas, através do Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa do Estado do Maranhão (SIFEMA) e pela Vale S.A., por meio do Termo de Cooperação Técnica assinado entre a empresa, a Fundação Vale, a Caixa e a entidade organizadora, foi repassado o aporte de R$ 6,24 milhões.

“A própria associação de moradores faz a gestão do recurso que vem da Caixa Econômica, faz a compra do material, negociação de menor custo, contrata e acompanha a mão de obra para execução de serviços. Na etapa de alvenaria, por exemplo, temos três empresas contratadas, por isso ganhamos agilidade na execução e possibilidade de negociação”, explica Flávio Schmidt, coordenador das obras de reassentamento

No entanto, com os cortes de recursos do Minha Casa Minha Vida e a alta dos preços para a conclusão, as famílias sofrem agora com o risco de paralisação das obras. Para cobrir a defasagem, avaliada no momento em aproximadamente R$ 10 milhões, a comunidade apresentou demandas aos governos municipal e estadual, além da mineradora Vale.

A Prefeitura do município de Açailândia apresentou o aporte de R$ 1 milhão, referente a recursos da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais). O governo do Maranhão afirma que já realizou estudo técnico e jurídico sobre a solicitação de aporte de R$ 6 milhões, mas por conta da pandemia e da concentração de esforços financeiros e humanos do governo estadual no enfrentamento da crise sanitária, essa e outras agendas ainda serão retomadas. Dessa maneira, considerando a possibilidade de aportes da Prefeitura de Açailândia e do Governo do Maranhão, faltaria a quantia em torno de R$ 4 milhões, custo que pode subir com a demora.

A Vale, por sua vez, declara em nota que “sobre o pedido de aporte financeiro adicional feito pela Associação de Moradores à Vale este ano, a empresa informa que manteve diálogo técnico com a referida Associação e está avaliando a pertinência e viabilidade de atender ao pedido”.

Kaya Lazarini, a arquiteta urbanista responsável pelas obras do Reassentamento Piquiá da Conquista, que deve alojar as 312 famílias de Piquiá de Baixo avalia que a equipe está próxima de 30% das obras executadas. Ela explica que caso cada medição leve o prazo de um mês, as obras seriam concluídas no prazo de 17 meses, mas caso todos os recursos fossem garantidos ainda esse ano, o novo bairro seria entregue à população com o prazo reduzido de 12 meses.

“Essas famílias não são fruto de déficit habitacional, estão sendo expulsas do lugar que elas construíram, então elas não estão recebendo indenização. Vários membros da sua família morreram e morrem. Elas continuam vivendo na poluição e hoje esse reassentamento só existe porque elas lutaram por isso e estão lutando ainda”, explica.

O crime é real

No vídeo para a ONU, Bolsonaro não falou de mineração. Muito menos de Piquiá de Baixo. No discurso, o presidente sequer admitiu qualquer problema ambiental.

Mas para Francisca Sousa, a dona Tida, que perdeu o marido para um câncer causado pelos impactos de mineradoras em Piquiá de Baixo, a realidade é cruel. Ela lembra que a comunidade era um lugar cheio de verde, feliz, mas hoje considera que se tornou um lugar triste, abandonado, porque algumas famílias “precisaram abandonar o sofrimento”. E cruel também é a indiferença.

“Ele [Bolsonaro] não conhece o Maranhão, ele não conhece a comunidade de Piquiá de Baixo. Ele diz assim porque é uma pessoa desumana”.

Uma das primeiras moradoras da comunidade, amparada pela perda do marido, de amigos e vizinhos, hoje  dona Tida é Presidente da Associação de Moradores e Moradoras de Piquiá e faz esforço na linha de frente por reparações a todas as famílias atingidas pela mineração.

Larissa Santos, da Coordenação Política da Rede Justiça nos Trilhos, organização que auxilia e assessora comunidades impactadas por violações de direitos humanos e ambientais cometidos por empresas mineradoras e siderúrgicas, especialmente a multinacional Vale, lamenta que as recomendações não sejam assumidas e cumpridas pelo governo brasileiro.

“É um relatório muito forte, com informações verídicas, resultantes de uma visita, de uma missão feita in loco e que traz recomendações muito importantes para a responsabilização das empresas e recomendações para o estado brasileiro. Se essas recomendações fossem, de fato, cumpridas e assumidas por quem cabe, certamente a efetivação e conclusão do processo de reassentamento de Piquiá de Baixo estaria mais próximo”, afirma.

 

Fonte: Brasil 247