Verdadeiro bem

Astolfo Alurâm (Guilherme Novaes Vieira da Slva)

Certa feita, Joaquim, um trabalhador desesperançoso que era também um dos melhores da empresa, recebia uma bronca injusta do chefe engravatado. “Beep, beep”. Uma máquina de impressão fazia sons ao fundo.

Você não pode, Joaquim! Como você… Incompetente e… Muitos na fila, seu… E…

Joaquim tentava se concentrar, mas a dor na cabeça era muita. Gritante. Excruciante.

O homem à sua frente muito mais se assemelhava a uma hidra, como a que Hércules derrotara num de seus trabalhos. Um monstro com mil, não, duas mil cabeças que soltavam um fogo infernal. Impossível se concentrar naquilo que um monstro dizia. O entra e sai de pessoas, o frio do ar-condicionado e até os gritos de uns e outros, transformavam o lugar num perfeito campo de batalha. O monstro continuava a ofendê-lo com seus berros que vinham das profundezas do tártaro, quando de repente, ele saltou. Como um herói grego, pulava na garganta da criatura e começava a esganá-la com o máximo de sua força. Obviamente que jamais se esperaria isso num distinto escritório como aquele. E então, todos começavam a fugir. Gritos e mais gritos. Folhas e mais folhas eram jogadas para cima. Num instante, restavam no recinto apenas ele e o monstro abatido em suas mãos. Tão logo ele percebera o que fizera e já tratava de fugir. Correu. Desceu as escadas num pique olímpico! Não havia mais ninguém por ali. Depois, correu desesperado pelas ruas. No canto de um muro, estava uma haste longa com uma bolsa de soro. Por que aquilo? Não sabia. Também não havia ninguém nas ruas, e assim, ele escapou ileso. Ao fim do dia, o patrão engravatado chegava à sua casa luxuosa, sem um único arranhão. E ele, chegava ao seu casebre ridículo, digno de um trabalhador que jamais faria mal ao seu chefe.

E sobre isso escrevia um poema, pois era poeta.

Certa feita, Joaquim, o maior astronauta do mundo, ia pisar os pés no solo de marte. Tudo estaria perfeito, não fosse aquela dor de cabeça que sentia. Mas isto podia ser ignorado. “Beep, beep”. A nave fazia ao pousar.

Tão logo chegou, foi recebido aos aplausos por incontáveis homenzinhos verdes.

Seja bem-vindo, terráqueo! – Gritavam em coro, num idioma local. Felizmente ele o dominava.

Foi direcionado até uma longa mesa de banquete. Comeu até se fartar as deliciosas comidas locais. Eles, em contrapartida, se encheram de pipoca doce, maria-mole e outras iguarias trazidas pelo visitante. Ao seu lado estava uma longa haste com uma bolsa de soro. O motivo? Incompreensível. E então era hora de dormir.

Naquela época nem podia ainda escrever poemas. Era muito novo.

Certa feita, um mendigo esfomeado chamado Joaquim contava uns trocados miúdos. Os roncos do estômago quase podiam ecoar em suas paredes internas. Os transeuntes eram sombras sem rosto. Elas não se importavam nem com ele, nem com a haste e o saco de soro. Uma chegava perto para oferecer um vintém e ele se assustava. Era acostumado com a maldade dos homens. “Beep, beep”. Fazia um celular.

Expulsaram-lhe da frente da padaria e ele quase chorou. E não foi pela dor cabeça, mas sim, de raiva. E sobre isso escrevia um poema. E de alguma forma, ele lhe trouxe comida.

Certa feita, um homem muito rico chamado Joaquim, saboreava uma dose de uísque importado em sua magnífica sala de estar. Sentado em sua poltrona de madeira nobre e estofado de couro, ele facilmente lembraria um rei. Mas não era rei. Era um famoso escritor, que tinha em seu redor tudo o que podia querer. Mas não era isso o que lhe dava verdadeira alegria. Sua verdadeira posse se fazia invisível à maioria dos olhos, e somente uns atentos poderiam ver, se olhassem através de sua escrita. “Beep, beep”. O telefone fixo tocava. Mas ele o ignorou.

Sobre sua cabeça, um enorme lustre de cristal iluminava tudo. À sua frente, uma grande haste com uma bolsa de soro encarava-o. De súbito, sentia uma dor na cabeça e se desequilibrava. O copo se estilhaçava em mil e um pedaços, deixando o conteúdo se esparramar no piso encerado. Sua cólera foi tamanha que por alguns minutos, ele desmaiou. Quando tornou à consciência, escreveu um poema sobre essa dor e lutou com ela pelos próximos dez anos.

Certa feita, Joaquim, um velho à beira da morte, estava num hospital. Nem com todo o seu dinheiro pôde se salvar do intruso que habitava seu crânio. Sua cabeça, agora totalmente livre de cabelo, doía muito. “Beep, beep”. O maquinário ao seu lado fazia sem parar, mas logo pararia. Um tubo conectava seu braço a uma longa haste com uma bolsa de soro. Para que servia o soro? Não sabia. Lembrava-se de tudo, mas, no final, pouco importavam as coisas ruins, pois a vida de verdade viveu em sua mente, e lá estavam todas as coisas boas. Era também a sua mente, seu único bem de valor. E não mais podia escrever um poema sobre isso, pois morria um poeta.

VIDA DE GATO

Bela Sant (Thais Almeida de Jesus)

Ele permanecia imóvel, completamente intacto, aproveitando os últimos momentos em
que o estabelecimento permanecia aberto. Nada conseguia desviar sua atenção: os gritos
agitados dos cambistas em busca de vendas eram ignorados, assim como os empurrões
dos homens vestidos de preto que retornavam apressadamente para suas casas. Nem
mesmo o aroma do pastel fritando na barraca ao lado conseguia capturar seu interesse.
Tudo permaneceu sem chamar sua atenção até que uma grande mão gélida repousou em
seu ombro, acompanhada por uma voz autoritária que disse:

– Saia imediatamente daqui! Está tentando roubar minha loja?

Aquelas palavras cortaram como uma lâmina em seu pequeno coração. Ele abaixou o
olhar, que naquele momento estava inundado por uma profunda tristeza. Com sua
pequena mão de garoto de 11 anos, pegou seu kit de engraxate e partiu, lamentando não
ter tido a sorte de ser adotado pela mesma família do gato que observava na televisão da
vitrine. Pelo menos assim, teria uma almofada confortável para dormir e uma sardinha
fresca para comer, em vez de um pedaço de papelão duro e os restos de comida do lixo.

Vizinho da Morte

Mary Ferraz (Marielle Angélica Paes Ferreira)

Um grito agudo de uma mulher ecoou pelo ar, seguido por um som abafado, como um tiro.
Esses foram os barulhos que escutei do meu quarto enquanto investigava os assassinatos, até então intitulados como suicídios. Em uma cidadezinha pacata do interior é onde eu moro.
Poucos habitantes, daquelas cidades em que todo mundo se conhece e tem algum tipo de
ligação. Sou delegado e tenho poucos amigos, que são da polícia também. Como é uma
cidade bem parada, nunca tínhamos tanto trabalho, até que muitas mortes começaram, uma atrás da outra.
Todas elas mostravam ser suicídios, sempre com cartas de despedidas, alguns com uma arma na mão, uma faca, enforcados e overdoses. Mas como uma cidadezinha como essa poderia estar tendo esse surto? Muitos problemas psicológicos? Nesse século… Não duvido. Se não for, provavelmente colocaram drogas na água da cidade que fez metade da população ficar chapada o suficiente para se matar.
Havia algo estranho e minha mãe estava morando sozinha depois que meu pai morreu, como eu já tinha quase certeza que poderia ser um serial killer em ação, resolvi passar uns dias com ela. Eu sozinho não conseguiria resolver isso, nunca tive essa experiência, então chamei meus dois amigos para me ajudarem. Todos os dias, Ana e Carlos iam para casa da minha mãe depois do trabalho para continuar com esse caso, por volta das 20 horas. Ficávamos até de madrugada pesquisando possíveis suspeitos.
“Ainda não está claro para vocês? Só pode ser aquele seu vizinho estranho”, disse Carlos
direcionando para mim.
“Pior que concordo com ele, todo mundo diz que é um cara sem alma, até porque ele espalha ódio em todo lugar, ninguém gosta dele e ele não gosta de ninguém, vive sozinho”, disse Ana. Este homem era um ranzinza, as crianças tinham medo dele, xingava qualquer pessoa que cruzasse seu caminho.
“Pronto, já temos um suspeito”.

Os dias passavam e todos os dias uma nova morte. Nós três começamos a fazer uma escolta na casa do homem, sempre revezando. No meu dia, o velho saiu com aquelas sacolas de compras, provavelmente para ir em um mercado e eu fui acompanhando ele devagarinho, no meu carro. Parei em um semáforo e acabei me distanciando muito dele. Fui em direção ao mercado e quando cheguei lá tinha uma garota estirada na rua com um corte no pescoço, a faca estava ao seu lado e muitas pessoas gritando e correndo.

Chamei um socorro, peguei o celular da garota e havia uma mensagem dizendo que se ela
não se matasse o seus pais iriam morrer. Liguei para aquele número e adivinha quem me
atendeu? Aquele miserável!
Eu já tinha uma prova. Só podia ser esse homem. Contei para meus amigos e com um
mandato fomos para casa do assassino no outro dia. Chegando lá, era um silêncio completo.
“Venham aqui”, gritou Carlos da cozinha.
Estava lá, o homem na mesa. Morto.
Indícios de overdose e ao seu lado uma carta dizendo que ele tinha matado todas aquelas
pessoas e que não suportava mais fazer aquelas coisas.
“Caso resolvido”, disse Ana.
“Não sei, para mim não parece certo”
“Deixa disso, está claro que foi ele”, falou Carlos.
“Vou continuar investigando, com vocês ou sem!”
“Você é quem sabe”, disseram em coro.
Fui para a casa da minha mãe, dei um beijo nela e subi para o quarto. Abri uma garrafa de
uísque e comecei a beber enquanto trabalhava no caso. A frustração se misturava com o
álcool e, à medida que a noite avançava, cada peça do quebra-cabeça parecia se tornar ainda mais turva, talvez aquele homem realmente era o assassino.
Enquanto a bebida fazia seu efeito, ouvi um ruído estranho vindo da sala de estar. Um grito
agudo de uma mulher ecoou pelo ar, seguido por um som abafado, como um tiro. Eu ainda
meio desnorteado fui descendo as escadas, quando chego no andar de baixo, meus olhos se fixaram ao chão e vi o corpo de minha mãe ensanguentado, sem vida. Uma cena macabra de violência e morte. O sangue manchava o tapete e as paredes.
Sentados no sofá, olhando para mim com expressões calmas em seus rostos, de uma forma arrepiante, estavam lá, Ana e Carlos.
“Quer se juntar a nós, meu amigo?”, perguntou Ana, com sua voz carregada de um tom
sinistro.