Políticas públicas não levam em conta a dignidade das pessoas.

Maria Teresa Cruz*

Sabe aquelas perguntas que você jamais faria em voz alta? Essa é uma delas. Ao menos se você tem dentro de si um pingo de humanidade. Mas, considerando as três décadas de existência de um local onde reiteradas intervenções fracassaram, é muito possível que gestores públicos tenham pensado sobre essa hipótese. Afinal, criam programas que nunca tocam nos pontos fundamentais para se chegar a uma solução possível para essa população.

O próprio nome “Cracolândia” tem um vício de origem, porque impõe uma pecha de barbárie ao local e aos seus frequentadores. Vincula essas existências ao crack, desconsiderando todas as ausências de garantias dos direitos humanos.

Foi esse, inclusive, um dos pontos da análise assinada pela antropóloga social Deborah Fromm, que publicamos nesta semana aqui no Intercept. A grande audiência prova que “sim, precisamos falar sobre isso”.

Políticos, endinheirados interessados em investir no ramo imobiliário na região e tantas pessoas que não compreendem a complexidade do tema gostariam de levantar um tapete e colocar todas essas pessoas debaixo. Porque elas são incômodas e, dessa forma, ficariam invisíveis.

O termo criado pela filósofa espanhola Adela Cortina explica bem o que move esse desejo: aporofobia, ou aversão a pobre. Sim, muita gente – que é tomadora de decisão, inclusive – gostaria, sim, que essas pessoas desaparecessem.

João Doria, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo (e ex-apoiador de Bolsonaro), foi um dos políticos que chegou a anunciar ao lado de policiais o “fim da cracolândia”, após uma operação desastrosa ocorrida às vésperas da Virada Cultural, em maio de 2017.

Essa ação foi também um marco para que o “fluxo” voltasse a se espalhar pela cidade. Ao longo dos anos, outras operações aconteceram e o óbvio segue: a Cracolândia ainda está ali. Seus antecessores também fracassaram na execução de um plano para a região: Gilberto Kassab usou da mesma lógica, e podemos dizer que abriu portas para o processo de fluxo itinerante que segue até os dias de hoje. Fernando Haddad, atual ministro da Fazenda, apostou no programa “De braços abertos”, com um adequado foco na redução de danos.

Na mesma época, o conceito rivalizava com o programa Recomeço, do governo estadual, que chegou a ser coordenado pelo psiquiatra Ronaldo Laranjeiras, um defensor da internação compulsória, da abstinência como único caminho para lidar com drogas e das comunidades terapêuticas.

O DBA perdeu musculatura e acabou com o fim da gestão Haddad. O Recomeço existe até hoje, e acho que não preciso gastar mais do que uma frase para mostrar que não é uma solução. Pelo contrário. A gestão Ricardo Nunes, do MDB, está tendo que lidar com um fluxo que, em alguns dias, supera as mil pessoas e será um obstáculo para sua reeleição no próximo ano. Ao lado do governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, anunciou que vai criar pontos, ainda na região central, mas um pouco mais afastados da estação da Luz, para realocar os dependentes químicos.

Meu pai sempre me disse: “Teime, mas não aposte”. Então, vou seguir esse sábio conselho e não vou apostar. Mas, sem medo de errar, eu digo: não vai dar certo. Enquanto aquele território e as pessoas que nele habitam não forem olhados com a humanidade necessária e políticas públicas multidisciplinares – que envolvam saúde, habitação, segurança e assistência social – não estiverem caminhando juntas, vai sempre dar errado.

E a gente seguirá acompanhando esse tema e apontando para as reais intenções dos que insistem em termos como “guerra às drogas” e focam suas supostas soluções na repressão que, a história mostrou, nunca vai transformar nada.

*Coordenadora de estratégia e operações

Intercept Brasil