Dilvugação

por Tory Oliveira — Carta Capital

Para advogada, habeas corpus em favor de presas provisórias gestantes, puérperas ou mães de crianças pequenas expõe seletividade da Justiça

STF analisará pedido de liberdade para gestantes ou puérperas presas provisoriamente. Caso de Jessica Monteiro, mantida presa com o filho recém-nascido em São Paulo, aconteceu às vésperas do julgamento

Em apenas uma semana, a vida de Jessica Monteiro, de 24 anos, deu uma guinada traumática. No período de sete dias, foi presa em flagrante com uma pequena quantidade demaconha e, em estado avançado de gravidez, entrou em trabalho de parto na delegacia. Enrico nasceu no hospital, mas, dois dias depois, ficou confinado com a mãe em uma cela apertada e insalubre. Após a repercussão do caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu prisão domiciliar para a jovem, mas ainda cabe recurso.

A história e as imagens chocantes de Jessica atrás das grades dividindo um esquálido colchão com o recém-nascido trouxeram à tona o drama da maternidade no cárcere, às vésperas do Supremo Tribunal Federal (STF) analisar o pedido de habeas corpus coletivo (HC 143641), que solicita a libertação imediata [para a prisão domiciliar] de gestantes, puérperas ou mães de crianças pequenas presas provisoriamente, isto é, ainda sem julgamento.

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Em entrevista a CartaCapital, Eloísa Machado de Almeida, uma das três advogadas do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos que defenderão o pedido perante à Segunda Turma do STF nesta terça 20, fala sobre a seletividade do sistema de justiça criminal e sobre as violações de direitos humanos a que estão sujeitas as mulheres e seus filhos.

CartaCapital: O Supremo Tribunal Federal analisará nesta terça 20 o pedido de habeas corpus coletivo que pede a libertação imediata de mulheres grávidas, puérperas ou mães de crianças de até 12 anos. Por que o coletivo decidiu entrar com esse pedido?
Eloísa Machado de Almeida: Talvez esse habeas corpus coletivo represente de maneira mais clara as falências do nosso sistema de justiça criminal. Ao mesmo tempo, ele reúne a discussão sobre as condições degradantes que atingem todas as pessoas que estão presas e, nessa parte da degradação, é ainda mais evidente os riscos que estão associados às mulheres grávidas, ou puérperas ou mães de crianças pequenas que estão presas na cadeia.

É um caso de injustiça enorme, que coloca em risco a vida dessas mães e de seus filhos. Ou, quando esses filhos são maiores e a mãe é presa provisória, priva essas crianças de seu contato com ela nos seus primeiros anos de vida. O primeiro ponto é que representa essa grande violação de direitos que acontece no nosso sistema prisional.

Um segundo ponto que torna esse habeas corpus exemplar é que ele deixa muito escancarado a seletividade desse sistema. Entramos com o habeas corpus logo depois de ter sido concedida a ordem para a [mulher do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral] Adriana Ancelmo.

O caso dela é um exemplo de aplicação correta da lei, de se permitir a convivência da mãe com seus filhos, ainda mais quando falamos de prisões provisórias. Mas ele expôs a ferida da seletividade, em que pouquíssimas mulheres, e certamente não as mulheres que são comumente presas, tiveram acesso a esse benefício.

Em razão disso, nós consideramos que seria uma boa oportunidade de levar esse tema para o Supremo, para que ele se pronunciasse sobre a violação de direitos e corrigisse a injustiça no tratamento desigual a tantas mulheres que estao presas.

CC: Qual é a expectativa para o julgamento? Quais são os principais obstáculos que vocês imaginam que enfrentarão durante a discussão com a Segunda Turma?
EMA: Nós esperamos ter uma posição positiva do tribunal. Um primeiro obstáculo a ser superado é processual: será a primeira vez que o STF vai julgar um habeas corpuscoletivo. É uma ferramenta que nós, do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, entendemos ser adequada para fazer frente à violações, que são massivas e também coletivas. Exigir a individualização, nesse caso, é negar-se essa justiça. O primeiro desafio, enorme, será esse. O segundo é o preconceito e a seletividade que opera também no STF. Talvez os ministros fiquem com receio de conceder uma ordem muito ampla para todas as mulheres e acabem reportando aí uma injustiça.

CC: O fato de não haver mulheres na Segunda turma influencia, de alguma forma, o resultado?
EMA: É evidente que a ausência de mulheres nos espaços de poder e tomada de decisão influenciam a maneira como essas decisões são tomadas. Mas é o tribunal que nós temos e a turma que nós temos. E, mesmo em casos de gênero, eles conseguiram avançar. Então, está distante de ser, de fato, um problema. Nós esperamos que essa não seja a principal dificuldade para a concessão desse habeas corpus.

CC: Na semana passada, veio a público o caso de Jessica Monteiro, presa em trabalho de parto durante o carnaval após ser flagrada com uma pequena quantidade de maconha. Após o parto, ela foi reencaminhada à carceragem com o recém-nascido. Casos como esse sensibilizam a opinião pública, em geral resistente à medidas mais progressistas?
EMA: Acredito, que, nesses casos específicos das mulheres gestantes presas provisórias, isto é, sem condenação e inocentes, portanto, até que se consiga provar o contrário, mulheres grávidas presas ou parindo presas sensibilizam a todos.

Não à toa, a legislação do Marco Legal da Primeira Infância foi aprovado [em 2016], justamente em razão dessa sensibilidade social que existe na proteção a essas mulheres e às crianças. Então, apesar de em geral haver muita rejeição da população em relação a medidas mais progressistas no sistema prisional, esse é um tema que parece ser unânime. Todo mundo sabe que é injusto deixar uma mulher que não foi condenada parir presa.

CC: Por que você afirma que a justiça criminal brasileira trata as mulheres de maneira seletiva? 
EMA: Esse tema expõe essa chaga da seletividade como nenhum outro. A maior parte das mulheres que estão presas – mais de 40% das encarceradas no Brasil são provisórias e, das presas, mais de 60% são acusadas de algum tipo de crime associado ao tráfico de drogas. Sabemos também que, em razão da construção dos tribunais, qualquer droga encontrada em uma residência acaba acusando todos aqueles moradores ali.

Então, muitas mulheres são associadas ao tráfico em razão de viverem com seus companheiros associados a essa atividade, em sua maior parte, pequenos traficantes com pouca quantidade. Então, se opera uma enorme seletividade para as mulheres pobres, negras e pouco formalmente educadas permanecerem na prisão.

CC: Caso o HC seja aceito, quais as consequências de curto prazo?
EMA: O que nós pedimos e esperamos que aconteça é que o Supremo demande a libertação imediata de todas as mulheres gestantes, puérperas ou mães de crianças de até 12 anos que estão presas provisoriamente.

Nosso entendimento é de que a legislação exige a concessão dessa liberdade provisória nessa  situação particular. Porque não estamos falando só do direito da mulher de responder ao processo em liberdade, mas também dos direitos da criança de conviver com essa mãe em seus primeiros anos. A consequência imediata seria essas mulheres todas saírem da prisão.

CC: Tem-se uma estimativa de quantas mulheres seriam beneficiadas?
EMA: Temos alguns números no processo. Por exemplo, apenas de mulheres gestantes, são mais de 600 presas. Mas ainda não há uma varredura de todos os casos de mulheres que têm seus filhos pequenos fora do cárcere e precisariam conviver com eles.

Acreditamos que a decisão do Supremo vai ser inclusive um grande impulso para que essa informação venha a público. Faz parte dessa rol de violações de direitos essa opacidade do sistema prisional. Não se conhecem os dados, esses dados, quando publicados, não são fidedignos, além de serem muito difíceis de acessar.

Não só uma política pública precisa ter muita clareza nos dados envolvidos, mas também uma estratégia de defesa. E nós estamos falando de pessoas acusadas da prática de um crime, também precisa ter esses números muito claros. Esperamos que o habeas corpuscoletivo, de maneira tangencial, também ajude a produzir esses dados, que até hoje não existem.

CC: Quais são os principais problemas, do ponto de vista dos direitos humanos, que podemos apontar no quadro das mulheres gestantes ou mães de crianças que estão encarceradas?
EMA: A cadeia é um local de doenças como a sífilis e a tuberculose, não há atendimento pré-natal adequado, faltam quadros médicos. Isso sem se falar do grau de violação a uma mulher que sequer foi condenada parir algemada em uma cama de hospital e voltar com o recém-nascido para uma sala fétida, suja, muitas vezes superlotada. São violações de toda ordem, que tornam, de fato, imprescindível que o STF conceda esse habeas corpus.