Entre 2010 e agosto de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recebeu nove denúncias de posturas racistas de juízes em suas decisões. Desse total, seis foram arquivadas, duas suspensas e uma está em tramitação. O Brasil de Fato acessou o dado via Lei de Acesso à Informação (LAI).

A juíza Inês Marchalek Zarpelon afirmou, em sentença de 19 de junho deste ano, que um suspeito de cometer assaltos em Curitiba, praticava os crimes por ser negro.

Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente.

O caso, revelado pelo Brasil de Fato em agosto deste ano, foi denunciado três vezes no CNJ. Dois processos foram suspensos e o terceiro, movido pela Corregedoria Nacional de Justiça, ainda tramita no órgão. Na última decisão, dia 19 de agosto, o ministro Humberto Martins ofereceu 60 dias para que a defesa de Zarpelon se manifeste.

Entre os seis processos arquivados, está o caso da juíza Lissandra Reis Ceccon, da 5ª Vara Criminal de Campinas, que condenou, em julho de 2016, um réu a 30 anos de prisão por latrocínio e destacou, na sentença, que o homem não corresponde ao perfil de um criminoso.

“Vale anotar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido”, afirmou Ceccon. O ministro Humberto Martins, do CNJ, decidiu arquivar a denúncia contra a magistrada em agosto de 2019.

“Não há que se falar em abuso de liberdade e independência funcional, pois não evidenciada qualquer afronta aos deveres elencados na LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) ou no Código de Ética da Magistratura”, afirma Martins em sua decisão. “Os elementos não traduzem que o magistrado possuía o intuito ofensivo, nem preconceituoso que pudessem revelar a quebra de desvio ético ou de conduta”, completa.

Thiago Amparo, advogado e professor de políticas de diversidade na Fundação Getúlio Vargas (FGV), discorda da decisão do CNJ. “Está muito evidente a violação ética, dentro das regras da Magistratura, quando a raça de uma pessoa está associada ao cometimento de crime. Ao falar que uma pessoa não tem o perfil de bandido, associando o perfil à raça da pessoa, há um crime, pois não há legislação brasileira que descreva isso, então não é uma interpretação da lei.”

Para Sheila Carvalho, coordenadora do núcleo de Violência Institucional da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, a juíza “emitiu uma sentença racista”. “Ela usa elementos diretos de práticas do racismo. Agora, na decisão que exime ela de responsabilidade, em nenhum momento se usa a palavra ‘racismo’. Eles não usam deliberadamente, uma vez que você coloca o ato do racismo, ele é um crime inafiançável e imprescritível.”

Sobre a decisão do CNJ, Amparo avalia que o “judiciário não pune crime de racismo ou injúria racial, porque ele percebe que não existe o intuito ofensivo. Nesse caso, não tem outra forma de punir, se não usando as palavras que a juíza escolheu para usar na sentença, não há como fazer um exame psicológico na juíza para saber se ela é racista.”

“Judiciário racista”

Um levantamento divulgado pelo CNJ em 25 de agosto deste ano, mostra que há 19.673 mil juízes no Brasil. Em 2019, os magistrados emitiram 32 milhões de sentenças e decisões terminativas. Com dados tão elevados da estrutura do sistema judiciário, o baixo número de denúncias de racismo chama a atenção de Amparo.

“De fato, é um caso de subnotificação, justamente porque se entende que não haverá uma investigação profunda sobre racismo, justamente porque sabemos que os órgãos como o CNJ não vão punir os desembargadores e os juízes. A subnotificação vem dessa sensação de impunidade”, explica o advogado.

Carvalho acredita que haja uma “naturalização” do racismo no sistema jurídico do país, que impede que as denúncias sejam levadas adiante. “Nós temos um judiciário extremamente racista, mas que não se enxerga como racista. Isso é muito grave. Nós temos todo um sistema judiciário racista, que vai desde a polícia, passando pelo Ministério Público, até os juízes. Essa estrutura pratica o racismo em bases cotidianas sem entender que estão fazendo isso. É uma banalização da violência racial e o judiciário não é diferente”, aponta Carvalho.

Outro lado

A juíza Inês Marchalek Zarpelon não foi localizada pela reportagem. Após a publicação da matéria o CNJ enviou uma nota ao Brasil de Fato citando suas iniciativas para coibir o racismo, mas não rebateu diretamente os pontos citados no texto. Leia abaixo a íntegra da nota:

Entre as diversas ações promovidas pelo Conselho Nacional de Justiça na busca pelo combate ao racismo estrutural no Brasil, a mais recente foi a criação do Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário. Instituído em 17 de setembro, o grupo debaterá, entre outros temas, os direitos dos negros. Os integrantes vão acompanhar a proteção e a implementação dos princípios de direitos humanos no âmbito do Poder Judiciário. O Observatório foi anunciado pelo presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux em seu discurso de posse.

Entre orientações, normas, programas, parcerias e capacitações que contribuíram para avançar no acesso à Justiça dos brasileiros, o CNJ regulamentou, nacionalmente, a adoção das cotas raciais em concursos para magistrados, por meio da Resolução CNJ n. 203 /20152015. A iniciativa cumpre o Estatuto da Igualde Racial (Lei n. 12.288/2010) na busca pela redução da desigualdade de oportunidades profissionais para população negra brasileira.

Com a resolução, a magistratura se tornou a primeira carreira jurídica a estabelecer esta ação afirmativa nas seleções. Em 2013, com a publicação do Censo do Judiciário pelo CNJ, foi feita a primeira pesquisa sobre o tema. À época, os negros eram apenas cerca de 15% do total de juízes no Brasil, apesar de representarem mais de 50% da população brasileira, de acordo com o IBGE. Novo estudo elaborado pelo Conselho, em 2018, o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, revelou um leve aumento na participação dos negros: 18% dos magistrados entrevistados se declararam pretos ou pardos.

Em sessão realizada na última terça-feira (25/9), o Plenário do CNJ aprovou resolução que determinou a reserva de 30% das vagas a candidatos negros nas seleções para estágio em órgãos do Poder Judiciário. A regra terá vigência até 9 de junho de 2024, término do prazo de vigência da Lei nº 12.990/2014, que trata da reserva de vagas oferecidas para negros nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União.

Também em setembro deste ano, a igualdade e o combate à discriminação racial se tornaram casos de monitoramento pelo Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão. O monitoramento dos casos de discriminação racial foi proposto pelo reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e integrante do Conselho Consultivo do Departamento de Pesquisa Judiciária (DPJ) do CNJ, José Vicente.

Nos dias 7 e 8 de julho, foi realizado o Seminário Questões Raciais e o Poder Judiciário. No dia 30 de julho, o seminário Democratizando o Acesso à Justiça trouxe o combate à discriminação de raça como um ponto importante de debate. E, em 12 de agosto, a Reunião Pública sobre Igualdade Racial no Judiciário reuniu mais de 30 especialistas que trouxeram propostas de aprimoramento da prestação jurisdicional.

 

Fonte: Brasil de Fato