Uma espécie de monopolização da forma de ingresso no ensino superior brasileiro vem ocorrendo por meio da expansão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que já é adotado como vestibular único ou um dos aceitos por 84% de todas as universidades públicas do país. Na contramão, tivemos neste ano o menor número de inscritos no exame desde 2005, quando o Prouni só tinha um ano de existência, não existiam Sisu ou Fies, e o exame ainda não era utilizado como vestibular direto para ingressar em universidades públicas.

Tive a oportunidade de conversar com 60 jovens da rede pública, de 19 estados diferentes, que estão inscritos na edição atual. Também falei com alguns que optaram por não se inscrever. Sobre estes, por favor, não achem que foi porque perderam o interesse de ingressar no ensino superior. O que aconteceu, em muitos casos, foi que esse interesse foi superado pelo medo, falta de confiança e por não acreditarem que havia possibilidade de conquistarem a vaga dos sonhos.

A grande maioria dos inscritos disse pensar ou já ter pensado em desistir. As razões para isso têm muita semelhança com as que fizeram com que milhões de outros nem se inscrevessem.

Jovens como Gabrielly relataram que tem sido uma verdadeira missão permanecer estável emocionalmente frente ao Enem deste ano: “Tenho muita ansiedade e pensamentos de insegurança. Às vezes penso que conseguirei realizar uma boa prova, mas estou extremamente insegura. Mesmo tentando ver um lado positivo, parece ser impossível.”

Gabrielly é de Minas Gerais, e sua fala representa bem o que ouvi de todos os outros alunos. Alguns precisaram até procurar atendimento psicológico. Outros, mesmo inscritos, ainda pensam em desistir ou já não estudam mais e irão fazer o exame sem esperança alguma.

Quais as fontes de tanta ansiedade e desmotivação? Encontramos as respostas para essa pergunta nos voltando para os desafios que os alunos da rede pública enfrentam. Perguntei sobre isso para eles, e as respostas foram: falta de recursos tecnológicos, falta de um espaço adequado para estudar, dificuldade de conciliar trabalho e estudo, dificuldade de estudar sozinho, dificuldade de conciliar as tarefas da escola com a preparação para o vestibular e falta de apoio familiar.

Desconexão entre escola e Enem

Além disso, há um ponto que muitos citaram e que é a fonte de muita desmotivação: eles notam uma desconexão entre os conteúdos da escola e os cobrados pelo exame. Sobre isso, Alana, aluna do Maranhão, diz: “Percebi isso desde a primeira vez que fiz o Enem, porém estava no primeiro ano, então pensei: ‘Provavelmente verei essas coisas no 2° e no 3° ano’. Foi a mesma coisa que nada. Acreditava que sairia do Ensino Médio preparada para o Enem, mas isso não aconteceu.”

Escuto isso constantemente dos alunos, e alguns já me disseram que precisavam faltar à escola para estudar para o vestibular. Decidi tentar entender melhor essa “desconexão” que relatam, e uma estudante da Bahia, Ester, me ajudou com isso. Segundo ela: “É mais uma questão de atraso curricular mesmo.”

Também falei com Moacir, professor de História na rede pública de Alagoas, e ele concordou com Ester: “Não existe desconexão entre a grade e a prova. O grande problema é a defasagem, falta de acompanhamento familiar e questões estruturais da rede pública. Esses fatores atrapalham a absorção de determinados conteúdos, isso vai se avolumando, e, na fase final, quando professores tentam minimizar esses danos, alguns são minimizados, outros sanados, e outros ficam em aberto. O aluno, assim, chega à prova e nota essa desconexão.”

Desigualdade entre rede pública e privada

Na rede pública, para quebrar essa “desconexão” e aumentar a familiaridade dos alunos com exames como o Enem, são desenvolvidas ações independentes por iniciativas de alguns professores, coordenadores ou diretores. Para isso, eles se dedicam além do previsto e, muitas vezes, investem dinheiro próprio para imprimir simulados, por exemplo.

Já a rede privada conta com recursos e estruturas próprias que aumentam o potencial de exploração da grade e fazem isso com um claro enfoque nos vestibulares. Além disso, a probabilidade de um aluno da rede privada precisar conciliar estudo e trabalho é muito mais baixa do que a de um da rede pública.

Essas diferenças foram escancaradas pela pandemia atual e são grandes geradoras das desigualdades entre as duas redes. Os alunos da pública sabem que, embora a prova seja a mesma, os pontos de largada e condições de treinamento não são.

A expansão do Enem, quando não acompanhada de políticas que criem pontes entre ele e os alunos da rede pública, diminui seu potencial como instrumento de democratização do acesso ao ensino superior e aumenta a desigualdade na competição por uma vaga entre alunos das redes pública e privada. É necessário uma maior comunicação entre os avanços de políticas de ingresso e de reserva de vagas com o público alvo dessas políticas.

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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

Fonte: Deutsche Welle (DW)