Decreto vem em meio à crise no sistema penitenciário do país; massacre em Manaus deixou 55 mortos em maio

Ao exonerar equipe que fiscaliza violações de direitos humanos em prisões, decreto de Bolsonaro gera avalanche de críticas no Brasil e no exterior. Para especialista, medida acaba com principal órgão antitortura do país. 

DWO Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), braço do governo federal que fiscaliza violações de direitos humanos em presídios, perdeu com um decreto presidencial toda sua equipe de peritos. Publicada no Diário Oficial da União na terça-feira (11/06), a decisão de exonerar os 11 cargos do órgão teve repercussão internacional.

Entidades de direitos humanos descreveram a medida como um “retrocesso” e um “desmantelamento” da entidade de combate à tortura. ONGs brasileiras denunciaram o presidente Jair Bolsonaro à ONUpor entenderem que o país está descumprindo acordos internacionais. Peritos exonerados também criticaram a medida. Em nota, o governo negou que haja prejuízo ao funcionamento do MNPCT.

A queixa às Nações Unidas foi apresentada pelas organizações Justiça Global, Terra de Direitos e Instituto de Defensores de Direitos Humanos. Elas pedem ao órgão internacional que faça pressão para que o Brasil garanta o “pleno funcionamento” do mecanismo antitortura.

Para Isabel Lima, coordenadora da Justiça Global, o caso tem um impacto internacional devido a acordos que o Brasil assinou sobre direitos humanos e o combate a práticas desumanas.

“O Brasil tem um compromisso internacional ao ter assinado em 2007 o protocolo facultativo da Convenção da ONU contra a Tortura, por isso denunciamos a atual medida do governo Bolsonaro de transformar os cargos de peritos em funções sem remuneração”, afirma Lima.

“Isso é um ataque frontal ao avanço que o MNPCT conquistou no combate à tortura nos últimos anos e vem justamente numa época em que o Brasil passa por mais uma chacina em um presídio do país”, acrescenta ela, lembrando a morte de 55 presos num massacre em presídios de Manaus em maio deste ano.

Criado em 2013, o MNPCT faz parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e era composto por 11 peritos independentes que tinham acesso às instalações de privação de liberdade, como presídios, centros de detenção, hospitais psiquiátricos, abrigos de idosos, instituições socioeducativas e centros militares de detenção disciplinar.

Agora, o decreto 9.831/2019 remaneja os 11 cargos – com remuneração mensal média de R$ 10 mil – para o Ministério da Economia. Além disso, o texto assinado por Bolsonaro prevê que a função de perito seja de “prestação de serviço público relevante, não remunerada”, ou seja, passará a ser exercida por voluntários nomeados pelo próprio governo.

“Na prática, órgão foi extinto”

Em nota divulgada pela ONG Conectas, entidade relacionada a direitos humanos no Brasil, o advogado Henrique Apolinário criticou o decreto, afirmando que ele praticamente acaba com o MNPCT.

“Na prática, significa a extinção do principal mecanismo que inspeciona presídios no Brasil. O governo enfraquece ainda mais um órgão que é essencial para melhorar a desesperadora situação das prisões brasileiras”, diz Apolinário, que também é membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão deliberativo que integra o Sistema Nacional de Combate à Tortura.

O atual coordenador da equipe de peritos do MNPCT, Daniel Melo, explica que atualmente apenas sete peritos estavam trabalhando na equipe. As outras quatro vagas aguardavam nomeação do governo para preenchimento desde o final de 2018.

Para Melo, a vacância dos cargos – aliada a episódios como aquele em que a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, tentou impedir que peritos do mecanismo fiscalizassem presídios no Ceará, em fevereiro – foi entendida pela equipe como um esvaziamento dos trabalhos do MNPCT.

“Estamos desde o período de transição do governo passado para o atual com uma limitação de equipe. Fazemos normalmente seis missões por semestre e em 2019 só conseguimos duas no Ceará”, diz o coordenador do grupo. “Isso ajuda a entender o volume de trabalho que temos para cada missão, pois temos que ir nos locais, pesquisar e entrevistar pessoas, e ainda produzir os relatórios. A robustez desse trabalho não pode ser feita sem dedicação exclusiva em tempo integral.”

Após a exoneração, os peritos do MNPCT divulgaram uma nota em que destacam o trabalho do órgão e lembram o tratado internacional contra tortura firmado pelo Brasil com a ONU em 2007. Eles pedem que o governo federal “suste imediatamente o referido decreto e garanta o exercício amplo, pleno e irrestrito das funções das peritas e peritos”.

Para Thiago Amparo, professor de políticas de diversidade da Escola de Direito da FGV em São Paulo, a medida traz ainda outros problemas, como impedir o trabalho de pesquisadores e de pessoas ligadas a entidades representativas de direitos humanos.

“Além do vácuo de trabalho que o governo cria ao exonerar imediatamente esses peritos, não fica claro quem vai ocupar esses cargos, mesmo que sem remuneração. O artigo décimo do decreto veda a participação basicamente de professores de universidades e integrantes de entidades representativas e de pesquisa”, destaca o advogado.

Organizações internacionais reagem

Entidades internacionais de direitos humanos, como a Human Rights Watch (HRW) e a Associação para a Prevenção da Tortura (APT), também criticaram a medida do governo brasileiro. Para a HRW,  o “decreto não só enfraquece como pode inviabilizar a atuação do mecanismo”.

Em entrevista à DW Brasil, o pesquisador da organização César Muñoz afirmou que a decisão do governo praticamente anula o trabalho do órgão mais capacitado para analisar a situação dos presídios e unidades de restrição de liberdade no país.

“Nós vemos essa decisão como algo preocupante, pois o Brasil assinou tratados internacionais sobre o combate à tortura. A criação do MNPCT foi uma das medidas mais importantes do Brasil nos últimos anos e é o órgão que melhor conhece o sistema prisional brasileiro. Sem seus peritos esse órgão deixa de existir”, afirma o membro da HRW.

Por sua vez, a secretária-geral da APT, Barbara Bernath, afirmou em nota que “o decreto constitui um grande retrocesso nas políticas de direitos humanos no Brasil” e pede que “o governo reconsidere a decisão e garanta o funcionamento do MNPCT”.

Gerald Staberock, secretário-geral da Organização Mundial Contra a Tortura (OMCT), também lançou críticas à medida. Ele afirma que o decreto “parece uma sentença de morte para uma instituição que proporciona o mínimo de proteção a presos no país”.

Questionado sobre os motivos que embasaram a decisão de exonerar os cargos remunerados do MNPCT, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pasta à qual o mecanismo está vinculado, informou apenas que o órgão “permanece ativo, sem quaisquer prejuízos ao Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”.

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