Eduardo Boaventura e Taurino Araújo: noite ciência e arte na UEFS(Foto: Divulgação)

 Com festejada crítica literária de Taurino Araújo, o filósofo, professor e poeta Eduardo Boaventura lança dia 6 de junho, 19h, no auditório da UEFS, o livro de poesias Alameda dos Encantos (obra reunida). Quarteto: 2023, 188 p.

     Na mesma data, sob mediação dos professores Heber Uzun e Agenor Sampaio Neto, o Colegiado de Direito da UEFS coordenado pela professora Márcia Misi, apresentará o Seminário Entre o logos e o mito: Taurino Araújo, a Hermenêutica da Desigualdade, a estética e a potência da palavra na arte de formular um pedido.
 Veja íntegra da crítica literária aqui.

TAURINO ARAÚJO CRÍTICA LITERÁRIA. A modernidade lírica de Eduardo  Boaventura: Alameda dos Encantos (obra reunida)

Eu creio no método, urdidura das coisas e das palavras, naquele percurso que  possibilita a manifestação da arte e da retórica de CÍCERO catalogada como Ingenium, que  é talento e criatividade, poesia, ensino e filosofia, voos propositais e metafísicos,  construção relevante de sentido, maturidade em determinada linha. Diria GUILHERME DE  ALMEIDA que a minha missão crítica aqui consiste tão somente explicar a poesia de  EDUARDO BOAVENTURA, em breve leitura guiada de suas imensas possibilidades. Afinal,  “a poesia é a linguagem natural de todos os cultos” (MADAME DE STAËL).

Quero, portanto, falar da proeza irmã de HÖLDERLIN, RILKE, FERNANDO PESSOA e de EUGENIO MONTALE. Da poesia ponte de EDUARDO BOAVENTURA, professor, filósofo  e poeta, não necessariamente nessa exata ordem e, sobretudo, falar da arquitetura presente  naquelas duas montanhas separadas por imenso abismo a que se refere HEIDEGGER, nas  quais habitam filósofos e poetas, Filosofia e Poesia — tão próximas e ao mesmo tempo  separadas.

Há, uma correlação, uma ordem, um ensinamento e um método na poética de  EDUARDO BOAVENTURA e, sobretudo, uma metapoética que reflete, em atitude  francamente filosófica, o tempo e a vida como um todo. Vejamos o poema Compreensão:  “Criança não sabe, descobre/ Criança não explica, expressa/ Pois tudo nos ultrapassa…  Somente pelo aprendizado do não-saber/ Voltamos a ser do tamanho de tudo”. Logo, a  poesia DE EDUARDO BOAVENTURA não se lê por ler.

Uma página desse quilate, inclusive, seria epígrafe eloquente e adequada em  diversos campos do conhecimento, direcionamento, apoio e provocação de vida, apta à  produção de uma terapêutica sobre dificuldade ou sofrimento, resistência ou potência  frente à impossibilidade de um não fazer nada. Passeios metafísicos encontrados na poesia  dos maiores e em FERNANDO PESSOA, o maior deles, ombreado a CAMÕES.

A poesia de EDUARDO BOAVENTURA, em sua singularidade, busca a compreensão  do tempo, de sua passagem, bem como a geração e morte das coisas neste tempo. Trata se da expressão da nostalgia dos amores, dos desejos e dos encontros, diante do  implacável transcurso do tempo, inclusive a memória do tempo da infância, no qual  desenha-se o primor de sua poesia e tal se constata em Alameda dos Encantos, poema

síntese de sua obra reunida, naquilo que o filósofo GIAMBATTISTA VICO (1668-1744)  descreve como sendo o trabalho mais sublime de dar sentido até mesmo às coisas  insensatas, entretendo-se em conversar com elas como se fossem pessoas vivas e  ambiências de um mundo apenas descritivo quando arremata: “Os homens do mundo  infantil, por natureza, foram sublimes poetas” e isso o leitor encontrará na obra de  EDUARDO BOAVENTURA.

De outra banda, ao afirmar que a vida é mistério e supera o homem, a poesia de  EDUARDO BOAVENTURA é a manifestação de um “estado de mente poética”, uma  configuração mental em que há uma criação de formas simbólicas vindas de experiências  emocionais do poeta, formas estas que sofrem transformações até chegar as palavras que  se constituem em poema ou seja, expressões da superação a que se refere o nosso poeta,  em dois tempos demarcados de concepção e de concretização, conforme postulou  MARISA PELELLA MÉLEGA in EUGENIO MONTALE –Criatividade poética e psicanálise.  Atelie Editorial, 2001, aqui exercitadas por quem faz poesia e sabe o que isso significa.

Logo, temos em EDUARDO BOAVENTURA que a maior expressão da vida é o  transcurso do tempo, que nos atropela, restando-lhe apenas o amor, a contemplação, a  meditação e sua interioridade. Daí um lirismo específico, ou seja, o treino dedicado do  poeta, do mestre e do filósofo até mesmo quando, vez ou outra, “Lutar com palavras  parece sem fruto. Não têm carne e sangue… Entretanto, luto”. CARLOS DRUMMOND DE  ANDRADE (O lutador. In: José). É como se EDUARDO BOAVENTURA retomasse a  radicalidade de FERNANDO PESSOA no dilema “navegar é preciso, viver não é preciso” e  nisso o poeta triunfasse sempre, com método e bússola em seu navegar poético,  consciente de que a vida é esse impreciso inesperado no qual o poeta e filósofo se torna  protagonista nesse mundo, as dificuldades que esse fazer envolve, o fato de trilhar com  tanta criatividade os passos bem sucedidos de MONTALE, exemplo de poeta e filósofo,  mesmo sem ter havido cursado os bancos escolares mais altos, o Prêmio Nobel de  Literatura de 1975.

A poesia de Eduardo Boaventura é mescla das conhecidíssimas cinco noções  clássicas de CÍCERO: natura, ingenium, ars, doctrina e studium que, tão distintas, guardam  entre si semelhanças semânticas. Embora seja difícil distinguir em EDUARDO  BOAVENTURA o que é parte do domínio da natura do que é parte do domínio do ingenium,  estamos falando tanto de dotes quanto de disposições naturais de um poeta maduro que  bem sabe a respeito da poética que está fazendo:

As palavras que eu dizia e só o vento escutava…

As canções que então ouvia e só a infância cantava…

Os gestos, sorrisos, sonhos que em mim, encarnados, trazia…

E hoje são apenas lembranças desta

história comovida que uns chamam de destino

e eu simplesmente vida…

Para MARTELE, citado por MÉLEGA (página 43), EUGENIO MONTALE seria filósofo  e poeta, pois durante toda a sua vida perguntou-se como é possível fazer poesia,  realizando dessa forma uma metapoesia através da qual a vida é um incessante fluir de  acontecimentos que se refletem por uma fração de segundo no espelho de nossa  consciência imediata com ausência completa de controles precisos como um fluxo de  sentimentos, emoções, ideias, que se sobrepõem, se misturam e se confundem.

Logo, essa poesia-ponte também encontrada no fazer poético, magistral e  filosófico de EDUARDO BOAVENTURA, demonstra que “a grande poesia mesmo quando  explicitamente não trabalha sobre motivos filosóficos, traz à luz a verdade dos temas  humanos”, tomando de empréstimo a comparação de CELESTINO PIRES, se ambas tem de  levar para dentro de si as grandes preocupações humanas, e assim tem sido a saga  holográfica desse filósofo e poeta: “aquela filosofia que não for portadora de vida e não  suscitar as capacidades humanas de criar imagens e símbolos, não faz [faria!] história” e  o mesmo vale para a plêiade de poetas-filósofos em metapoesia da qual fazem parte os  antecessores de EDUARDO BOAVENTURA: HÖLDERLIN, RILKE, FERNANDO PESSOA e  EUGENIO MONTALE.

A sua função poética, portanto, é também aquela apropriada seleção e combinação  dos eixos discursivos que JAKOBSON descreveu como sendo a combinação de  similaridades e de contiguidades, aqui ampliadas por causa justamente de seu domínio  filosófico: Os violinos do outono tocam canções nostálgicas para almas  contemplativas/Ouço vozes distantes/Vejo olhares de outrora/nas folhas que vão e vem/na  chuva que cai lentamente/E tudo sempre foi assim e sempre será:/sugestão e sonho/. Ode  à “mais concentrada forma de expressão verbal”, cuja impressão digital está nas  propriedades de som e ritmo (melopeia), aliadas às imagens (fanopeia) e às ideias  (logopeia), conforme destaca EZRA POUND.

Estas as possibilidades metafisicas em EDUARDO BOAVENTURA quanto a uma  “ligação profunda entre saber e desejo, o nexo íntimo de razão e paixão [que] não consiste  numa mistura de faculdades inferiores e superiores da alma, conforme sintetiza EMANUEL  CARNEIRO LEÃO, pois já “em si mesmo o desejo de saber é o mais selvagem dos desejos  e a razão, a mais lenta das paixões, muito embora a psicologia vulgar, concebendo a  personalidade numa espécie de topografia de regiões altas e baixas, oponha a razão à  paixão e cante os louvores do saber desapaixonado”: Por que toda beleza é tão dura  passageira e inesperada?/E agora o que posso fazer/ Com este poema trancado/Na minha  alma comovida /Por tanta promessa de vida?

EUGENIO MONTALE justificou as ditas possibilidades metapoéticas ao argumento  de que sua poesia “e acredito que de qualquer possível poesia é a condição humana e não  este ou aquele acontecimento histórico isso não significa alienar-se do que se passa no  mundo”. Segundo MÉLEGA, MONTALE busca expressar a essência das coisas, o que está  além dos olhos dos ouvidos do sensório do cotidiano e o que nós entendemos é estar na  realidade psíquica e por vislumbres (barlumes) pode ser agarrado e assim se expressa  embora com limitações em linguagem verbal. Eu creio no método, urdidura das coisas e  das palavras… Eu creio na finalidade das conclusões que fazem de uma leitura algo  proveitoso e inusitado.

Destarte, a modernidade lírica de EDUARDO BOAVENTURA, só pode ser registro de  sua identidade e originalidade que se desenvolve através dos demarcados princípios  formais de sua poética e forma de evocar aqueles “gemidos da arte” aos quais se refere  AUGUSTO DOS ANJOS: “Grito, e se grito é para que meu grito/Seja a revelação desse  infinito/ Que eu trago encarcerado na minh’alma!” (“Gemidos da arte”. In: Eu e outras  poesias)

Palavra e Memória! A memória é o maior patrimônio humano e estamos tratando  da memória que se expressa pela palavra poética; cultura através do trabalho que, segundo  MARILENA CHAUÍ, traz à presença as coisas antes ausentes.

Das coisas essenciais

Amar Letícia Ouvir Mind Games, de John Lennon

 Ouvir Your Song, de Elton John

 Chorar, ouvindo Mind Games Chorar, ouvindo Your Song

Amar Letícia

Ler poemas de Mário Quintana

Ouvir o silêncio da alma agradecida que bebeu da

água cristalina da poesia Amar Letícia

Passear pelos caminhos que percorri um dia quando eu era outro

Visitar a casa que habitei um dia quando eu era outro

Sorrir para o rosto que um dia tive quando eu era outro

Amar Letícia

 Que o meu passado seja aceitação

Meu presente, gratidão

 Meu futuro, esperança

Amar Letícia

Nesse caso, o gênio de MACHADO serve a EDUARDO BOAVENTURA de excelente  pretexto para a eficácia poética dessa introspecção, para explorar até mesmo, as  possibilidades discursivas desse “quando eu era outro”, na medida em que “o que nos faz  senhores da terra é esse poder de restaurar o passado para tocar a instabilidade das nossas  impressões e a vaidade dos nossos afetos” [“Sorrir para o rosto que um dia tive quando  eu era outro”] (Memórias póstumas de Brás Cubas).

Entrementes, a introspecção em EDUARDO BOAVENTURA ganha ainda mais força  e eloquência através do exercício de intensidade e constância de sua métrica das horas  quotidianas, vitória na construção de 136 poemas construtivos, até porque “A vontade e  a ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas  hão de sempre vencer, porque elas são as armas do forte, e a vitória é dos fortes”  (MACHADO, A mão e a luva).

 Força, máxime se estamos conscientes de que “(…) o tempo é um tecido invisível  em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo,  também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo,  e acaso do outro” (Esaú e Jacó), perfeita dose de intensidade e de constância: “Que o meu  passado seja aceitação/ Meu presente, gratidão/Meu futuro, esperança/ Amar Letícia”, diz  EDUARDO BOAVENTURA, poeta desde cedo, filósofo e cultor da Literatura Universal.

Em Canção de Improviso, EDUARDO BOAVENTURA remete a um tema recorrente  de sua poesia: diante da passagem do tempo, resta apenas a obra de arte, no caso, a canção  poética como possibilidade de construção humana de sentido: só lhe resta a canção….

Canção de Improviso

Ninguém possua esperança

De ver meu semblante esquivo

Chamo-me agora lembrança

Em tudo que morre eu vivo.

Pelos meus dedos escorrem

Despojos raros de mim

Versos que não me comovem

Cores de rôto Arlequim…

Vou pelas sombras da noite

Com tudo que resguardei:

A chuva fria, de açoite

E a canção que improvisei…

Semelhanças, dissonâncias e especificidades ao conciliar a justa harmonia entre  imagens e ideias suas das quais fala o precursor dele, MÁRIO QUINTANA: “Não sei que  paisagista doidivanas/ Mistura os tons… acerta… desacerta… /Sempre em busca de nova  descoberta,/ Vai colorindo as horas quotidianas”.

A poesia de EDUARDO BOAVENTURA é constructo original da modernidade lírica.  Sonoridade herdeira de VERLAINE, MANUEL BANDEIRA e MÁRIO QUINTANA, marcada,  entretanto, por peculiar e forte sentimento de introspecção. No entanto esta introspecção  é também uma afirmação da vida, do amor encarnado, como aparece no belíssimo poema,  Amor e Paixão:

Tua alma canta no meu sonho

O teu corpo vibra nas minhas mãos

Tua alma vive alta

Onde a alegria acontece

No teu corpo habita a vida e nada morre ou envelhece

Tua alma voa nos espaços do meu amor iluminado

O teu corpo vibra nos meus braços do meu desejo alucinado

O lirismo em EDUARDO BOAVENTURA expressa também a busca do amor como  cura das feridas existenciais do homem, anseio de unidade, desejo de comunhão das  almas. Tudo isso encontramos nesta delicada obra prima que aqui destaco:

Canção de Passarinho

Há tanta coisa

em seu peito você não quer

revelar: o sonho que foi desfeito, uma

tristeza sem par…

Há tanta coisa em seu jeito…

Mas eu não sei como

amar:

sertão agreste

sem leito de rio que

possa abrandar…

Há tanta coisa perdida…

Espero um dia encontrar:

 a vida da tua alma vivendo no meu olhar…

Ler EDUARDO BOAVENTURA é saborosamente defrontar-se com a imortalidade  mágica de um mestre da linguagem e do pensamento. Ouçamos o próprio poeta em  Apontamentos para uma história universal: “O que o tempo guardava porque sempre  desconhecia/ e que a memória recordava, porque de nada sabia”…

EDUARDO BOAVENTURA busca a essência do fazer poético e aqui recorro as outras  três palavras de CÍCERO, as quais eu ainda não havia detidamente analisado. Todas elas,  ars, doctrina e studium, podem designar um estudo, uma forma de conhecimento, e

podem apresentar, em dados contextos, significados extremamente próximos: “Ensinar é  um exercício de imortalidade.

De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o  mundo pela magia de nossa palavra (RUBEM ALVES)” e EDUARDO BOAVENTURA ensina  enquanto escreve.

Salvador da Bahia, 17 de janeiro de 2023.

TAURINO ARAÚJO, Ph.D.

Referências:

MÉLEGA, Marisa Pelella. Eugenio Montale–Criatividade poética e psicanálise. Atelie  Editorial, 2001.

POUND, Ezra. ABC da literatura. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1995. p.218

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e  José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1985.