“Na noite passada, em Cabul, os Estados Unidos deram fim a 20 anos de guerra no Afeganistão, a guerra mais longa da história americana.” Essas foram as palavras do presidente Joe Biden em 31 de agosto, um dia após concluída a retirada das tropas americanas daquele país asiático.

É notável, porém, que na mesma fala Biden assegurou: “Vamos manter a luta contra o terrorismo no Afeganistão e em outros países. Só não precisamos travar uma guerra terrestre para isso. Temos o que se chamam ‘capacidades além do horizonte’, o que significa que podemos atingir terroristas e alvos sem botas americanas em solo, muito poucas, se necessário.”

Claro que essa não é a primeira vez que a guerra no Afeganistão “acaba”. Em 2014, por exemplo, o então presidente Barack Obama anunciou que a missão de combate no país se encerrava, afirmando que “a guerra mais longa da história americana está chegando a uma conclusão responsável”.

Mais de uma década antes, em 1º de maio de 2003, o então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, um dos arquitetos da guerra do Afeganistão, declarara um fim da missão de combate no país, apenas horas antes de o presidente George W. Bush anunciar o mesmo em relação à guerra no Iraque.

Ainda assim, até hoje as Forças Armadas dos EUA mantêm um contingente no Iraque. Embora Biden tenha dito que a missão de combate no país estará encerrada até o fim de 2021, é óbvio que isso não exclui a possibilidade de militarismo continuado lá, seja na forma de ataques aéreos ou de uma presença institucional duradoura – ou, mais provavelmente, ambos.

Conceito limitado de guerra

Tais declarações revelam uma definição de guerra muito estreita, que minimiza suas manifestações, considerando apenas a violência militar na forma de batalhas terrestres. Tem-se forçado essa interpretação limitada a fim de excluir ataques aéreos e combate com drones, se empregados como tática isolada, pois são executados sob o pretexto de contraterrorismo que, de algum modo, é organizado separadamente da guerra.

A mesma lógica se tem aplicado a todo o aparato da guerra antiterror, apesar da violência abrangente praticada em seu nome. Em meu futuro livro, Innocent until proven muslim: Islamophobia, the War on Terror, and the muslim experience since 9/11 (Inocente até provado muçulmano: Islamofobia, a Guerra ao Terror e a experiência muçulmana desde o 11/9), eu forneço um enquadramento para se entender a Guerra ao Terror.

Eu defino cinco dimensões: 1) militarismo e combate; 2) políticas de imigração draconianas; 3) vigilância; 4) ações judiciais federais antiterrorismo; e 5) detenção e tortura. Se a guerra é restrita ao combate terrestre, quatro dessas dimensões ficariam de fora da sua definição – apesar da imposição de violência em massa, justificada pelo uso da linguagem de combate.

Embora haja uma resposta técnica à questão de se a guerra acabou ou não, baseada unicamente no conflito terrestre, essas limitações ignoram o fato de que a guerra configura as realidades cotidianas de gente que a vivencia das mais múltiplas formas, especialmente entre as comunidades e países que os EUA têm ou tiveram na mira. Nas guerras assimétricas, essa realidade é sentida de forma muito mais aguda pelos que ficam para trás e têm que lidar com as consequências dos conflitos.

O mito do fim das guerras

Isso é porque guerra não é apenas uma questão de violência física, mas também de constante ameaça de violência. Os americanos modelaram um mundo com base em sua Guerra ao Terror, onde sua violência estatal é onipresente. Isso significa, que mesmo na ausência da maioria dos aspectos bélicos visíveis, a guerra continua no ar. De fato, se os EUA ensinaram algo ao mundo, é que não existe a paz, como o oposto das guerras deles, somente um vai-e-vem de para onde a violência é dirigida.

Para o filósofo Robin Schott, autor do ensaio Gender and “postmodern war” (Gênero e “guerra pós-moderna), a guerra não deve ser vista apenas como um evento, ou uma série de eventos, mas sim como uma presença. Se compreendêssemos o conceito assim, pensaríamos na Guerra ao Terror como a presença de violência, manifesta em muitos contextos diferentes, ao longo dos últimos 20 anos.

Duas décadas após os ataques do 11 de Setembro e sua subsequente Guerra ao Terror, os EUA seguem infligindo violência em massa, no nível doméstico e por todo o globo. Aproveitando-se da definição limitada de guerra, baseada em eventos, e focando apenas na salvaguarda e segurança do povo americano, (pelo menos teoricamente) os EUA conseguiram criar a fachada do fim da(s) guerra(s).

Mas, para os atingidos em países desde o Afeganistão até o Iraque e a Somália, onde a guerra se manifesta profundamente, como uma presença, não como um evento, é imperativo perguntar: para quem acabou a guerra?

Por Maha Hilal cofundadora e codiretora do Justice for Muslims Collective. Antes ela deteve a bolsa de pesquisa Michael Ratner do Instituto de Estudos de Políticas Estrangeira, em Washington, EUA. O texto reflete a opinião pessoal da autora, e não necessariamente da DW.

Fonte: Deutsche Welle (DW)