Lá onde Judas perdeu as botas

Por Chico Ribeiro Neto

Éramos quatro irmãos: Luiz, Zé Carlos, Cleomar e Chico. A gente brigava muito entre si, saía na porrada às vezes e meu pai Waldemar esbravejava: “Vocês estão bom de morar lá onde o vento faz a volta”. Eu ia dormir e ficava pensando na curva do vento. Só mais tarde aprendi que vento não faz a volta.

Éramos seis, contando com Waldemar e Cleonice, minha mãe que sempre dizia que o livro “Éramos Seis”, da escritora paulista Maria José Dupré e lançado pela primeira vez em 1943, considerado por alguns um clássico da literatura brasileira, “era a cara da nossa família”.

Uma vez, numa discussão durante um “baba”, eu e Cleomar ficamos “dimal”. Meu tio Rubens, que morava lá em casa, ficou sabendo e resolveu fazer as pazes entre nós dois. Levou a gente pra sala e começou o maior sermão: “Político, que é político, vive aos tapas, um xingando a mãe do outro e no outro dia estão em cima do palanque se abraçando. Agora, irmão, que é irmão de sangue, resolve ficar um sem falar com o outro. Pois vocês vão dar as mãos agora”. A gente se cumprimentou, meio cabreiro e olhando pro lado, mas com o tempo a união voltou. Cleomar até um dia teve que brigar com Géo Beleza para que eu não tomasse porrada. Numa discussão no “baba” dei um murro em Géo, que era mais velho e mais forte do que eu, e se Cleomar não entra na briga eu ia tomar muita porrada.

“Porrada! Porrada!”, gritavam os meninos ao verem o começo de uma briga. Num instante, a plateia era numerosa. Até hoje, quando vejo briga durante um jogo de futebol na TV, me surpreendo gritando: “Porrada! Porrada!”

E as brigas de turma de rua? Luiz era da turma da Piedade e um dia, na Rua Chile, discutiu com um cara da turma da Saúde e marcaram uma briga para o dia seguinte no Bar Colon da Piedade, às 5 da tarde. Luiz, também conhecido como “Zarara”, avisou a turma e alguém advertiu logo: “Vamos avisar a todo o pessoal. Se ele vier sozinho, vocês brigam sozinhos. Mas se vier de turma, aí o couro vai comer”. Não deu outra. O desafeto chegou numa camioneta carregada de amigos na carroceria. Dentro do Bar Colon estava a turma espalhada em várias mesas, com Luiz logo na frente. Coisa de cinema. O tempo fechou e o espanhol teve um enorme prejuízo de mesas, cadeiras e garrafas quebradas.

“Pra você eu amarro um braço”, costumava-se dizer a um adversário cuja briga já era considerada ganha. Tinha também o negócio de falar assim: “O braço esquerdo é Pronto Socorro e o direito é Campo Santo. Qual é o que você prefere?”

Na década de 60 a briga era somente na mão. Até o canivete só começou a aparecer depois, e quem puxava um era logo vaiado, um sinal de covardia.

“Vocês tão bons de morar é lá onde o vento faz a volta”, repetia meu pai ao ver mais um briga da gente, acrescentando: “Lá onde Judas perdeu as botas”. Aos 12 anos, na hora de dormir eu ficava imaginando: o vento fazendo a volta, aquele poeirão, e em cima de uma pedra duas grandes botas…

No outro dia a briga continuava.

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