por Pai Rodney/Carta Capital Foto Reprodução/Carta Capital
Maria Escolástica da Conceição Nazaré tornou-se a maior ialorixá de todos os tempos e teve a seus pés todos os poderosos da Bahia
Para os adeptos do candomblé, Mãe Menininha do Gantois é uma referência fundamental. É uma espécie de paradigma, um modelo de conduta e sabedoria. Foi empossada como ialorixá aos 28 anos, em 18 de fevereiro de 1922. Mesmo longe da idade avançada, nessa época estava inserida na categoria dos “mais velhos”.
A dignidade do seu posto e sua altivez inspiravam um profundo respeito e, como lembra o historiador Cid Teixeira, todos os garotos, religiosos ou não, lhe tomavam a bênção.
A trajetória de Mãe Menininha é emblemática. Sua fama e poder correram o mundo e durante os 64 anos em que esteve à frente do terreiro do Gantois teve a seus pés gente simples e muito humildes, que ela apoava inclusive financeiramente, e também artistas, intelectuais e chefes de Estado.
Como registrou Jorge Amado, as comemorações do jubileu de ouro de Mãe Menininha como ialorixá do Gantois reuniram a seu redor a cidade inteira, incluindo o governador e ex-governadores, o prefeito, vereadores e deputados, a intelectualidade baiana, banqueiros e industriais, além, é claro, dos filhos e filhas de santo de todos os cantos do Brasil.
No romance-documento Bahia de Todos os Santos, Jorge Amado revela que “Mãe Menininha está acima de toda e qualquer divergência de ordem política, econômica ou religiosa. É a ialorixá de todo o povo da Bahia, sua mão se estende protetora sobre a cidade. Não se trata nem de misticismo nem de folclore e sim de uma realidade do mistério baiano”.
Foi nessa mesma época que o compositor Dorival Caymmi fez a canção Oração de Mãe Menininha, que se tornou sucesso no País inteiro nas vozes de Gal Costa e Maria Bethânia. Homenagens que continuaram e ainda seguem: documentários, enredos de escola de samba, biografia, artigos acadêmicos, cordel, discos, reportagens, iconografias.
Agora, quem era e como viveu Mãe Menininha? De onde vinha tamanho poder? Como descreveu o próprio Jorge Amado, uma mulher “pobre, modesta, tímida, que nasceu no candomblé e nele cresceu, no ofício da compaixão e da bondade, nos ritmos antigos, conservando valores profundos da cultura brasileira”.
Na biografia escrita por Cida Nóbrega e Regina Echeverria e publicada em 2006 revelam-se a humanidade e as fragilidades de Mãe Menininha. Mesmo acometida por doenças bastante graves, que a mantiveram presa a uma cama por mais de década, conseguiu comandar os destinos de seu terreiro com sabedoria e autoridade.
Vê-se aqui o exemplo de alguém que mesmo idosa superou suas dificuldades, tanto físicas quanto sociais, e manteve sua dignidade e autonomia até o último dia de sua vida. Por isso tornou-se uma expoente da categoria dos “mais velhos”: cumpriu um papel de protagonista, transformando-se num símbolo do poder que emana dos orixás, a grande mãe da Bahia, a grande mãe do Brasil.
“A estrela mais linda”, como cantou Caymmi, é até hoje lembrada por sua bondade e dedicação, sobretudo aos mais pobres. Abnegada, sempre atendeu a todos e sempre ajudou os que mais precisavam. Distribuía tudo que ganhava e ali mesmo no alto do Gantois criou suas duas filhas e sucessoras, Mãe Cleusa (falecida em 1997) e Mãe Carmen (atual mãe de santo do terreiro), e outros tantos filhos adotivos, reproduzindo a velha tradição das famílias extensas africanas.
Com “a mão da doçura”, Mãe Menininha influenciou decisivamente para que cessassem as restrições sofridas pelo candomblé, como a obrigatoriedade de autorização policial para a realização dos rituais, e também na abertura dos terreiros a toda sociedade. Tornou-se mãe de santo de muita gente famosa, como Vinicius de Moraes, Gal Costa, Caetano Veloso e Maria Bethânia.
“O sol mais brilhante” traduz o carisma da velha ialorixá, que por sua benevolência, como convém a uma boa filha de Oxum, se fez memorável. “Doce e veneranda mãe, símbolo da bondade e da ternura brasileiras”, diria Jorge Amado. Mãe Menininha é um ícone, pois sintetiza valores universais de humanismo. Mãe Menininha transcende.
Seu poder é o poder do povo negro. Esse poder que tantos insistem em negar, mas não deixam de sentir. Poder latente, que move os corpos, que faz ver a vida com mais cores, que acelera o coração no compasso dos atabaques. Nas palavras assertivas do grande escritor baiano:
“Definitiva foi a contribuição dos negros para a formação de nossa cultura nacional. Apesar das terríveis, monstruosas condições em que a cultura negra se encontrou no Brasil ao desembarcar dos navios negreiros – nas condições de cultura de escravos, vilipendiada, desprezada, combatida à morte, violada, cuja substituição violenta, na base do cacete e do batismo, foi tentada quando os senhores de escravos quiseram impor aos negros, íntegra, a cultura dos colonos, da língua aos deuses.”
Mãe Menininha é a síntese dessa vitória. Vencemos o açoite, o batismo compulsório, as armas da polícia. Foi a força dos orixás, mas também a resistência dessa gente negra, dessa geração que tem em Mãe Menininha sua maior representante. Mais de seis décadas à frente de um terreiro. Desde os anos 1920 até a década de 1980. A história seguiu seu curso, do Estado Novo ao regime militar, da religião oficial ao Estado laico, da perseguição à liberdade religiosa.
Ditaduras, presidentes depostos, renúncias, suicídios, ainda assim Mãe Menininha se manteve plena, reinando e influenciando do alto do Gantois os destinos da Bahia. “Papisa de todos os candomblés do mundo”, tinha o poder e a força do diálogo, especialmente o inter-religioso.
O país de Irmã Dulce, Chico Xavier, Dom Helder Câmara é também o país de Mãe Menininha do Gantois. Lideranças religiosas que se sobrepunham aos interesses políticos e promoviam o bem do povo.