Sputnik – Bastante impopulares, mas elogiadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), as reformas anunciadas pelo presidente argentino, Javier Milei, terão um grande impacto na sociedade argentina, não só por suas repercussões econômicas, mas pela sua recepção na sociedade e na política do país, afirmaram analistas ouvidos pela Sputnik Brasil.

Desde sua posse, no dia 10 de dezembro, até agora, Milei já alterou mais de mil aspectos da legislação argentina através de grandes pacotes de decretos, como o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) e a “Lei Ómnibus“. Com eles, Milei estabeleceu um “estado de emergência” até o final de 2025, que pode ser estendido até 2027, aumentando seu poder para exercer mudanças no país.
Dentre as principais medidas estão o corte de funcionários públicos, a desvalorização do câmbio, a privatização de estatais, mudanças no regimento das eleições, o fim dos subsídios à indústrias, a combustíveis e a transportes públicos, além de maiores medidas repressivas contra protestos.

Uma peça arte do artista Sergio Díaz apresenta a falecida lenda do futebol Diego Maradona com as mãos envoltas em um rosário e uma auréola atrás da cabeça, pintada em uma nota de dez pesos argentinos em 9 de setembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 02.11.2023

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As reformas já estavam presentes em sua campanha eleitoral, onde prometeu fazer cortes severos na atuação do Estado. Para Lucho Karamaneff, doutor em ciência política e professor na Universidade Nacional de San Martín (UNSAM), no entanto, as medidas vão “desiludir grande parte de seu eleitorado”. “Toda a sua campanha baseou-se na ideia de que a elite iria pagar o reajuste, que os políticos iriam pagar“, disse.

“Mas com uma desvalorização do peso superior a 50%, inflação que passou de 10% mensais para 30% e o fim os subsídios aos transportes e serviços públicos, o reajuste será pago pela maior parte da sociedade argentina, principalmente pelos setores de classe média e média baixa que acompanharam Milei em sua vitória.”

Com menos de 30 dias de governo, Milei já viu fortes reações da população argentina devido ao teor de suas reformas, mesmo com medidas que limitam o direito a manifestação no país. “São medidas liberais que servem apenas e tão somente a um dos pilares do sistema econômico: o empresariado“, afirma Renata Alvares Gaspar, doutora em direito e professora de direito Internacional do curso de relações internacionais da ESPM.
“A população que está vulnerável fica ainda mais vulnerável porque direitos básicos de proteção estão sendo revogados por decreto“, resume. “As leis, num sistema democrático, têm vias próprias para serem modificadas“, explica. “E desde logo não seria o decreto presidencial uma destas vias.”
Manifestantes usando bandeiras da Argentina em protesto contra as reformas econômicas do presidente Javier Milei, em 27 de dezembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 02.01.2024
Manifestantes usando bandeiras da Argentina em protesto contra as reformas econômicas do presidente Javier Milei, em 27 de dezembro de 2023

Milei terá um embate com os outros poderes?

Apesar de tudo isso, Milei ainda conta com uma taxa de aprovação de 60% perante o eleitorado argentino, algo comum para um presidente em início de mandato, mas a opinião pública “volátil”, lembra Karamaneff.
Segundo os especialistas, o desenrolar da situação perante o eleitorado vai determinar como os poderes Legislativo e Judiciário vão encarar as reformas de Milei. Ambos ainda vão se manifestar sobre os “decretaços”, com o Judiciário, que já foi acionado para decidir sobre as reformas, marcado para se pronunciar a partir de fevereiro.

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Karamaneff sublinha que Milei provém de um partido novo (Partido Libertário), criado ao redor de sua figura, que conta com apenas 38 de 257 cadeiras na Câmara de Deputados e oito de 72 senadores eleitos. “É um presidente de clara minoria, aquele que assumiu a posição mais fraca desde o regresso da democracia”, afirma.
Nesse sentido, o apoio de outros partidos conservadores, como a União Cívica Radical “que possui um histórico antiperonista e que, diferentemente do PRO, do ex-presidente Mauricio Macri e Patricia Bullrich, não apoiou Milei no 2º turno”, será essencial para a continuidade dos decretos de Milei, aponta Karamaneff
Para Gaspar, o Congresso estará observando como andam os protestos e poderá decidir por uma aprovação parcial das medidas.

“Se o movimento das ruas seguir firme e crescente, pode ser que o Congresso aprove em parte [os decretos de Milei] para tentar agradar a todos”, diz.

“Isso porque a via de acesso ao poder é por eleições e é difícil os deputados irem contra seu eleitorado“, afirma a doutora em direito.
Mais importante do que a base de apoio de Milei, contudo, é a oposição. Atualmente, a frente opositora possui 102 deputados e 41 senadores, dando a eles amplo espaço para frearem algumas das medidas mais extremas do presidente, no entanto, aponta Karamaneff, ela se encontra fragmentada e sem liderança.
Com isso, aponta o cientista político argentino, a estratégia que Milei parece estar implementando, de “fragmentar a discussão, a fim de limitar uma estratégia comum para a oposição” se mostra bastante eficaz.

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Ainda que talvez a resposta que os opositores de Milei desejam não venha do Congresso, aponta Gaspar, ainda há a possibilidade delas serem barradas pelo poder Judiciário. “Os argentinos têm uma Constituição protetiva socialmente falando”, ressalta.
O arcabouço jurídico argentino, sublinha a especialista, tem um forte caráter de proteção a grupos minoritários, como trabalhadores e consumidores, de modo que tanto o Congresso quanto o Judiciário podem intervir e reverter medidas que violem as normas de proteção social. Essa situação, segundo Gaspar, pode levar a um impasse entre os poderes.
O Congresso ouve as ruas e o Judiciário ouve a lei. Se você tem um arcabouço protetivo (…) e se o Congresso aceitar o decreto como o Milei quer, ele vai violar as normas de proteção social”, explica.

“E se ele viola as normas de proteção social e o Judiciário for aplicar a lei, é óbvio que vai criar um impasse entre o Executivo e o Judiciário“, disse a doutora.

Embates entre os poderes, destaca, não são ruins, mas sim “parte do sistema de freios e contrapesos” que garante a democracia. “Os poderes, face a impasses com respeito à ordem democrática, devem se opor para prevalecer a Constituição.”
Para Karamaneff, no entanto, a Corte “como também é um ator político de peso, vai tomar seu tempo e será muito estratégica em suas ações, de modo a não enfrentar diretamente o presidente eleito.”

“A Corte suprema terá um papel chave em limitar, se o fizer, o avanço de Milei”, afirmou o professor.

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