Paulo Marubo no Acampamento Terra Livre, em Brasília, em protesto contra a violência que atinge os povos indígenas (Artemísia Marubo/Divulgação)

por Felipe Milanez — Carta Capital

Coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari relata invasões e denuncia o assassinato de indígenas “flecheiros” por garimpeiros

Os indígenas são, historicamente, os últimos a serem ouvidos sobre casos de violência na Amazônia.

Após denunciar em primeira mão as investigações em curso sobre o massacre cometido por garimpeiros contra indígenas em isolamento voluntário na Amazônia – ocorrido entre o final de julho e o início de agosto – procurei ouvir a perspectiva dos indígenas.

Paulo Marubo, coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), relatou tal perspectiva a mim por telefone – posteriormente transcrita e relida para ele. Ao final, faz o apelo: “Queremos divulgar a nossa situação nas redes sociais e na mídia. Por favor, divulguem esse meu depoimento.”

Para o movimento indígena, diz Paulo, não há dúvidas de que o massacre contra os “flecheiros” ocorreu. “Esse massacre dos flecheiros, mortos pelos garimpeiros que entraram na região ocupada pelos isolados, nós soubemos por relatos de nossos parentes indígenas. E o Estado diz que não está acontecendo. A Funai diz que não tem prova.”

 Com 8,5 milhões de hectares, a terra indígena do Vale do Javari foi homologada em 2011 e, segundo dados da Funai, há ao menos 14 indicativos de índios isolados. O órgão considera “isolados” grupos indígenas que não estabeleceram contato permanente com a população não-indígena. Há pelo menos 107 registros de isolados no Brasil, todos na Amazônia.

Confira o depoimento de Paulo Marubo, coordenador geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja):

“Nós, indígenas, sempre fizemos esse tipo de alerta de violência contra os isolados para o Estado: que invasores irão matar os parentes isolados. Fizemos alertas para o governo tomar providências diante da situação que a gente vê, com relação aos invasores na terra indígena.

A Funai nunca se manifestou sobre nossas denúncias, e nós sempre colocamos a gravidade disso. Começamos a pressionar o governo em 2014, mas, na verdade, o movimento indígena já vinha fazendo cartas alertando o Estado da gravidade que essas invasões poderiam provocar contra os parentes isolados: olha, vai acontecer um massacre.

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Em fevereiro de 2015, teve uma troca de tiros na região. Isso foi na base do rio Ituí, bem na frente de proteção. Isso é muito grave. Sempre enfrentamos esses tipos de invasores, caçadores, pescadores aqui na região. E a situação piorou.

Na parte da região sul da Terra Indígena [Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas], há outros invasores, como fazendeiros que já estão passando dos limites da demarcação da terra indígena. Mas a nossa região é muito grande, e a Funai diz que não consegue fazer a fiscalização, nem atender essa demanda do movimento indígena de fazer a proteção das áreas dos índios isolados.

As invasões estão acontecendo à vontade, sem que o governo tome qualquer providência. O governo não está nem aí, essa é a verdade. A gente faz as denuncias, mas o movimento indígena não tem recursos financeiros para fazer o trabalho do que é do Estado. Não temos recurso financeiros para tomar a frente do Estado na proteção de nosso território: dependemos de ajuda do governo.

Hoje, há invasores por toda a terra indígena do Vale do Javari. Eles estão por todos os lados: pelo rio Javari, vindos do Acre, pelo rio Jurá e até pelo Peru, onde nossas terras indígenas fazem fronteira. .

E, por estes pontos de invasões que eu estou citando, há os parentes indígenas isolados.

Por exemplo, no rio Jutaí, tem os parentes isolados que já se movimentaram de uma outra área: os invasores expulsaram eles até para fora do limite da terra indígena!

Os isolados estão tentando fugir por causa dos conflitos provocados por estes invasores, que estão acontecendo com cada vez mais frequência por aqui. Estão fugindo por todos os lados.

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Esse Massacre dos Flecheiros, que foram mortos pelos garimpeiros que entraram na região ocupada pelos isolados, nós soubemos por relatos de nossos parentes indígenas. E o Estado diz que não está acontecendo. A Funai diz que não tem prova. Falam que as aldeias continuam na região.

Para a Funai não teve conflito. Mas as informações que chegam dos parentes é que os isolados foram massacrados. Tem a visão indígena e a visão do Estado. O Estado não vai dizer o que está acontecendo. Para o Estado, está bom, tudo bem. Mas teve massacre.

Nós lançamos uma nota pública na XI Assembleia Geral da Coiab, no Pará, no final de agosto. A UNIJAVA encaminhou uma denúncia ao Ministério Público Federal sobre o massacre. Foi a partir daí que o MPF pressionou o Estado para tomar providências, para fazer as operações. O Exército com outros órgãos que estão fazendo operação na região contra os garimpos.

Nós sempre sofremos aqui.

A base de fiscalização do rio Quixito está sucateada. Portanto, o rio está descoberto para a entrada de mais invasores. Nossos parentes falam que há pescadores entrando direto.

No próprio município de Atalaia do Norte, a gente vê no mercado carnes de caça, de quelônios, tracajá, tartaruga. São tiradas da terra indígena para abastecer o município. A gente encontra essas carnes de caças ilegais, de caçadas ilegais feitas dentro da terra indígena, que estão a venda no mercado. Nosso território está descoberto, sem vigilância. E a Funai alega que não tem recursos. E fica por isso mesmo.

Além disso, tem o narcotráfico direto na nossa região.

A gente não sabe o que fazer. Por mais que a gente faça denúncias, parece que elas não valem para nada. Ninguém faz nada. Como os isolados não sabem se defender no mundo brancos, a gente está aqui, pelo movimento indígena, para defender eles.

Volto a dizer: o Estado só diz que não tem recursos, não tem recurso humano para atender a demanda de proteção do Javari, e isso nos deixa muito preocupados, pois ninguém sabe o que vai acontecer daqui para diante. 

Para preservar o meio ambiente, uma reserva, não tem recurso. Mas para os garimpeiros, para as mineradoras, o agronegócio, sempre tem recurso. Para deputado tem recurso. Mas para as pessoas que precisam de fato, alegam que não tem recurso.

O Vale do Javari concentra a maior quantidade de índios isolados do mundo todo. Em toda parte da terra indígena tem parentes isolados, e eles estão aparecendo por todos os lados cada vez mais.

Na Aldeia Marunawa, do meu povo Marubo, uma aldeia que fica bem no centro da terra indígena, agora estão aparecendo os isolados. Mas antes, a gente nunca tinha visto isolados lá. Eles estão aparecendo por causa dos invasores que estão invadindo por todos os lados, a terra indígena.

A gente não sabe mais para onde mandar denuncia da tragédia que está acontecendo no Vale do Javari. A gente está pedindo apoio de todas as pessoas que querem ajudar os povos indígenas: para encaminhar nossa situação e divulgar para que todo o mundo saiba a situação real de desespero no Vale do Javari.

Queremos divulgar a nossa situação. Divulgar nas redes sociais e na mídia. Por favor, divulguem esse meu depoimento.

O Estado brasileiro não acredita em nós, indígenas. Nós não fazemos um relatório técnico como os brancos: mas fazemos cartas, que, para nós, do movimento indígena, é o relatório dos índios. O que nos queremos agora é uma resposta do governo sobre a situação das invasões e das mortes dos isolados.

Nunca levam em consideração as nossas denúncias. Mas nós queremos respostas.

Semana retrasada, na área ocupada pelos parentes isolados Korubo, os indígenas Marubo, do meu povo, encontraram um grupo de pescadores na praia, na beira do rio, dentro da terra indígena. Tiraram até foto desses invasores.

É uma área de perigo e de muito risco, pois é uma área dos Korubo, não é permitida nem para nós: todas as semanas os Korubo passam ali. Isso é bem na região aonde os pescadores foram encontrados. Ninguém fez nada sobre a nossa denuncia.

Os pescadores estão lá na área dos Korubo isolados. E se algum pescador nessas últimas semanas atirou em algum Korubo e a gente não ficou sabendo?

Mas os isolados não morrem só de tiro, também de doenças. E se deixaram lá alguma roupa contaminada por gripe? Eles vivem num mundo diferente, não tem anticorpos, e podem pegar algumas doenças e morrerem rápido.

Se a gente diz isso para a Funai, a Funai quer um relatório técnico. Mas nós vamos falar por meio de nossas notas e nossas cartas.

Por isso, peço: ajudem a divulgar a situação trágica que estamos vivendo no Vale do Javari”

Leia a íntegra da nota da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira  

Nota de repúdio e exigência de investigação no caso do massacre dos povos isolados no Vale do Javari

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), instância máxima de representação e defesa dos direitos dos povos indígenas da Amazônia Brasileira, juntamente com sua rede de organizações e povos indígenas, vem por meio desta manifestar o seu incondicional APOIO, assim como compartilha e ratifica todas as notas de repúdios e manifestações dos povos indígenas do Brasil contra o massacre sofrido pelos índios isolados no interior da Terra Indígena Vale do Javari, localizada na região da tríplice fronteira Brasil, Peru e Colômbia.

Assim como vimos ainda REPUDIAR veementemente tal ação brutal e violenta impetrada contra a vida desses indígenas em isolamento voluntário, em uma região que concentra a maior quantidade de povos indígenas isolados do mundo, para qual o Estado brasileiro deveria garantir os direitos mínimos de territórios e proteção para a sua sobrevivência.

Tal massacre só vem demonstrar e reafirmar o incalculável retrocesso aos direitos humanos e direito a vida dos povos indígena neste país plural. Os ataques e a morte dos nossos parentes do Vale do Javari é a morte de todos nós povos indígenas que lutamos incansavelmente pela nossa existência na nossa própria casa, que defendemos a existência da humanidade através da proteção dos recursos ainda existentes neste território.

Manifestamos a nossa grande indignação sobre a mutilação da Funai, mais especificamente sobre o fechamento das Frentes de Proteção Etnoambientais e o corte drástico dos recursos do órgão indigenista estatal, que minimamente possibilitam os trabalhos dos servidores para proteção desses povos.

Este corte e desmonte da Funai é do interesse dos grandes políticos que continuam saqueando nossos recursos, direitos territoriais e de existência. É do interesse daqueles que defendem a mineração em terras indígenas e vem loteando as diretorias da FUNAI para seu interesse próprio.

As diversas ameaças de retrocessos, ataques e o golpe contra a vida dos povos indígenas têm sido fatos claros neste País, ações que confirmam o preconceito, racismo e desrespeito com a vida do próximo. Os povos indígenas nunca estiveram tão ameaçados, desrespeitados e massacrados, mesmo com tantos avanços de garantias de direitos humanos, desde a invasão deste território indígena que deram o nome de Brasil.

A COIAB exige sérias investigação e atuação urgente dos órgãos e autoridades competentes, da ouvidoria da Funai, da 6ª Câmara do MPF, da Polícia Federal, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e do Senado Federal, do Conselho Nacional de Política de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai/MJ, e de outros órgãos e entidades, nesse caso do massacre no Vale do Javari.

Pois essa situação de ataques e mortes dos povos indígenas isolados na região não é o primeiro caso e vem se arrastando há décadas sem ter a atenção devida pelo Estado brasileiro.

A COIAB reafirma sua luta na defesa dos direitos indígenas e na existência dos povos indígenas do Vale do Javari, no apoio a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) e de toda a Amazônia, pelo direito a vida de cada um dos povos indígenas, bem como permanece vigilante e pronto para a guerra, se necessário for, pela garantia da existência dos nossos povos.

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira 

Manaus(AM), 12 de Setembro de 2017