© Sputnik / Ekaterina Nenakhova
A Copa do Mundo é um dos eventos que reúne milhões de pessoas de todas as raças, nacionalidades e visões. Algumas delas são ainda mais que simples amadores do esporte, mas verdadeiros aventureiros. A Sputnik Brasil teve a sorte de se encontrar com uma de tais figuras, um enigmático torcedor brasileiro, em Sochi, e ouviu sua história incrível.
Chama-se Carlos Alberto de Valentim, é paulista de gema, mas no Brasil ficou mais conhecido como Seu Nenê da Kombi — pelo nome do veículo que o ajudou a percorrer o mundo todo no âmbito de quatro Copas diferentes.
Paixão pelo futebol sem fronteiras
Ao nos mostrar as fotos e vídeos da sua amada Kombi, que tem sido o melhor amigo em todas as aventuras de Nenê, ele recorda sua trajetória.
“Dessas oito Copas que eu participei, [em] quatro delas eu fui de carro com essa van. Então eu saí do Brasil, fui para o México em 1986, e do México, depois da Copa, estendi para os EUA e Canadá. Foram 17 países da América percorridos em 1986. Depois disso, fui para a Copa de 1994 com minha Kombi atual. A placa dela é CUP0094, que é alusiva à Copa de 1994 nos EUA. E aí, fui novamente de carro para os EUA, foram viagens de mais de 50 mil quilômetros, nove meses de viagem vivendo no carro, morando no carro”, recorda ele com ar fanático.Evidentemente, já quando se fala sobre as viagens mais afastadas, ou seja, para outros continentes, é preciso um planejamento detalhado feito de antemão. Nenê conta para nós como é que foi em 1998, quando o evento foi sediado pela França.
“Quando o Brasil jogou nos EUA [em 1994] e foi campeão, ele automaticamente já estava classificado para a Copa de 1998. Aí, o que é que eu fiz: eu já montei meu projeto para ir para França com este mesmo carro em 1998. Embarquei o carro de avião do Brasil, foi junto comigo, foi no mesmo avião, era um avião de carga e passageiros da KLM. Desci em Amsterdã e rodei grande parte da Europa, a Ásia, ali foi para a Turquia, para a Síria, Jordânia, Israel, e ali já foi no Oriente Médio. Depois passei em Chipre quando voltei para a Grécia novamente”, partilha.
Além disso, teve ainda a oportunidade de conhecer a Finlândia e chegar até ao Círculo Polar Ártico, relembra Nenê. Por enquanto, a Austrália é de fato o único continente que o brasileiro ainda não percorreu.
“Esse meu carro, ele conhece toda a América […] com exceção das ilhas e das três Guianas [francesa, ex-holandesa e ex-inglesa] porque não tinha estrada para lá”, acrescenta.
Kombi, símbolo de uma épocaDe fato, a Kombi, uma van fabricada pela empresa alemã Volkswagen, acabou sendo um dos elementos mais simbólicos da época dos hippies, nas décadas 60 e 70. Já no Brasil, também ganhou grande fama e se produziu entre 1957 e 2013.
“Kombi… é porque é uma paixão do mundo, do brasileiro. A Kombi é um carro tão popular e no Brasil tem muitos […] E quando pararam de fabricar, a Volkswagen escolheu 20 pessoas que têm histórias com Kombi. E eu fui um dos escolhidos”, conta Nenê.
Em um vídeo que partilha conosco, se vê como ele recebe um agradecimento da empresa — uma calota assinada pelo Pelê. Para ele, confessa o aventureiro, foi um “negócio de ouro”.
“É um carro muito simples, ele tanto suporta bem uma estrada ou uma região de neve, como peguei lá no Círculo Polar, como suporta bem aquele deserto da Califórnia nos EUA […] sem me dar problemas. E qualquer coisa que acontece, o meu conhecimento de mecânica… amarro com arame e vou embora”, sorri o brasileiro.
Viagem à Rússia
Nenê confessa que tinha tido o sonho de conhecer a Rússia ainda muito antes da Copa atual. Até tinha já um projeto montado para isso — só que falhou devido a problemas de documentação. A coisa é que na época o brasileiro ainda precisava de visto para andar pela Rússia, o que complicava significativamente a viagem.Agora, quando essas coisas de burocracia não vão mais bagunçar a viagem, surgiu outro problema. E foi esse que não permitiu que Nenê viajasse para a Mãe Rússia com sua linda Kombi, “toda com design da Copa”, como sonhava.
“Eu não cheguei de carro por um problema sério. No Brasil eu estava tentando um patrocínio, um sponsor para patrocinar o meu frete aéreo que seria na faixa de 7.000 dólares […] Quando […] um amigo meu da Lufthansa conseguiu esse patrocínio, de não me cobrar nada para trazer o carro para Frankfurt, e de lá eu viria por terra para a Rússia… Acontece que eu fui perdendo tempo. Na semana que eu fui embarcar o meu carro, houve uma greve de caminheiros. No dia 21 de maio eu liguei para a empresa que me faz assessoria na parte documental, liguei para tratar da documentação às três horas de tarde e me falavam — é impossível, está em greve, não entra e não sai transporte de caminhão”, lamenta o torcedor.
Daí, Nenê estava dividido entre dois cenários possíveis, mas decidiu não arriscar.
“Aí eu tinha duas opções: ou eu espero para terminar a greve, que demorou 11 dias, para embarcar meu carro, e vou perder grande parte da Copa, ou eu pego um avião e vou como torcedor comum, como vou em todas as Copas quando não vou de carro”, diz.
Assim, pegou um voo da Emirates e chegou — ainda aproveitando quatro dias de estadia em Dubai no caminho de volta, pois a alma de viajante nunca se acalma.Contudo, Nenê não ficou desesperado — ele já preparou um plano que finalmente levaria sua Kombi até Moscou, e não só.
“Esse projeto eu vou transferir para a Olimpíada do Japão [em 2020], mas se eu for para a Olimpíada do Japão, eu entro pela Rússia e vou dirigindo”, promete.
‘99,9% são pessoas maravilhosas, agradáveis, honestas’
Mesmo estando sem seu fiel companheiro, Nenê chegou definitivamente para curtir a Rússia. E, julgando pelo que confessou em uma conversa com a Sputnik Brasil, na verdade está bem impressionado, tanto mais que a curiosidade para com a cultura do país despertou nele já há muito.
“Próximo aí de onde eu resido no Brasil, em São Paulo, tem uma sociedade que dá aula de russo. Eu ia lá para pegar aquela música Katyusha, eu queria aprender aquela música para cantar. Mas não tive tempo, eu estava com projeto e correndo muito, não deu tempo. Mas eu quero ver se até a final da Copa eu aprendo aquela música”, desabafa Nenê, de 75 anos, mas certamente com coração e cabeça aberta de um jovem.
Para ele, a Rússia garantiu um nível de segurança espetacular para a torcida estrangeira, e dá para sentir.
“A gente se sente muito seguro aqui, especialmente comparando com o Brasil. O Brasil passa uma fase assim de muita insegurança, muito desemprego, entendeu. Acho que as últimas administrações do país não foram tão boas, houve muita corrupção. […] Agora, quanto à segurança aqui na Rússia, realmente nós estamos encantados. É um lugar onde você deixa o telefone, você não se preocupa […] No Brasil tem que cuidar muito mais”, assegura.
“E outra coisa: 99,9% são pessoas maravilhosas, agradáveis, honestas”, manifesta o brasileiro.A comida — outra coisa sem a qual qualquer viagem ficaria incompleta — também agradou a Nenê e até o fez relembrar a pátria.
“Eu ontem comi um bife aqui em frente […] Comi aqui carne, batatinha frita, comi abobrinha, berinjela, uma alface e tomate. Então é muito parecido com a comida brasileira. Foi uma comida saudável”, narra.
Uma das causas da sua paixão pela Copa como evento, confessa, reside no seu espírito de paz e amizade. Certamente não é aquele torneio onde se deve esperar qualquer tipo de briga, opina.
“Agora, as brigas que existem no futebol são daqueles clubes […] Isso pode acontecer. Como existe aqui na Rússia, na Inglaterra, os ‘hooligans’ e outras torcidas meio violentas. Mas na Copa do Mundo não existe, é uma amizade muito grande, todo o mundo se dá bem, e a gente só faz festa”, diz ele, animado.
De acordo com Nenê, em 1994 as autoridades norte-americanas estavam com essa preocupação — relacionada com a possível violência — e acabaram surpreendidos com aquilo que resultou.
“Essa preocupação que você tinha com a briga da torcida — os americanos tinham quando tinha a Copa de 1994. A gente percebia que eles tomavam muito cuidado com as torcidas, mas no final da Copa os próprios policiais dançavam com os brasileiros. Não foi nada daquilo que eles imaginavam que podia acontecer”, recorda.
Ao lado do seu amigo francês, que hoje em dia reside em Guadalupe e torce dedicadamente pelo Brasil, assegura que a Copa, uma vez que entra na sua vida, já não pode te largar.
“É só festa. Copa do Mundo é só festa. Eu costumo dizer que quando uma pessoa vai na Copa do Mundo, ela já tá contaminada, ela vai querer [ir para] todas as Copas porque a festa é muito bonita”, relata.
Expetativa do time canarinho
Obviamente, após o Mineiraço de 8 de julho de 2014, todo o mundo está esperando ver uma revanche por parte da equipe verde e amarela. Já Nenê, fã com muita experiência e conhecimento, observa que hoje em dia a Seleção na verdade tem muita chance de a realizar.
“Agora nós temos uma equipe muito bem montada, muito bem preparada psicologicamente. O que nos abateu lá no Brasil, não sei se é aquela responsabilidade, o peso, acho que psicologicamente os jogadores não estavam fortalecidos. Eu acredito que hoje a equipe está muito bem”, analisa o torcedor.
Entretanto, confessa que está preparado para qualquer um dos cenários — pois no esporte é algo inevitável.
“Se perder, não vai ser por isso. Vai ser pela superioridade do adversário. Isso pode acontecer, mas nós estamos preparados para tudo: para perder, para ganhar. Viemos para ganhar. Mas se nós não ganharmos e o adversário merecer, nós vamos aplaudir”, diz. “Porque não pode ser só um time ganhar todos. Numa hora tem que perder, e a gente vai aceitar isso”, conclui Nenê com um sorriso.