Estudando os botos do Rio Amazonas (Inia geoffrensis) há quase quatro décadas, a bióloga Vera Maria F. da Silva começou a observar nos últimos oito anos um comportamento incomum na espécie: o ataque de machos a filhotes, por vezes recém-nascidos.
Entre mamíferos, é comum que machos de algumas espécies, como leões, macacos-aranhas e golfinhos, matem os filhotes, quando não são de sua linhagem, como forma de garantir que apenas o seu DNA seja passado para as próximas gerações. Além disso, matar a prole faz com que a fêmea entre em estro mais rapidamente – ou seja, no cio –, estando assim fértil para a reprodução.
Mas não é isso o que parece estar acontecendo com os botos da Amazônia. “Além de casos de infanticídio, também identificamos agressões gratuitas de machos a filhotes – por vezes, que já estavam mortos. Mais do que isso, verificamos que para os botos não há vantagem evolutiva de induzir a fêmea a entrar logo em estro, porque os botos machos em idade reprodutiva andam juntos. Portanto, uma fêmea sexualmente receptiva atrairia a atenção de muitos pretendentes, nenhum dos quais poderia esperar acesso exclusivo. Esse comportamento sexual intenso confunde os machos sobre a paternidade dos filhos e, consequentemente, eles correriam o risco de matarem um próprio descendente”, explica Vera, que é membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), da Fundação Grupo Boticário, e coordenadora do Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia e do Projeto Boto.
O tema foi retratado em um estudo publicado na revista científica Behaviour em meados de 2021. A pesquisa de Vera e outros estudiosos busca compreender as causas desse comportamento recente. Desde 2013, a equipe de Vera presenciou cinco ataques na região da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, sendo que três resultaram em morte. Embora o número de ataques identificados pareça pequeno, não pode ser descartado e ignorado. São casos relacionados a um comportamento novo na espécie e que podem representar um universo maior, já que a área de observação compreende um trecho de 100 quilômetros do curso do Rio Solimões, grande parte dela com 2 quilômetros de largura.
Vera explica que a probabilidade de a equipe de pesquisa estar no lugar certo na hora certa para testemunhar um ataque que provavelmente dura menos de uma hora é extremamente pequena. Da mesma forma, as chances de se encontrar uma carcaça de recém-nascido resultante de um ataque feito por um adulto são remotas. Jacarés, abutres, piranhas e peixes necrófagos como a piracatinga consomem rapidamente quase tudo que morre na água ou fica preso nas margens dos rios. O monitoramento da reserva ocorre desde 1994, seguindo uma metodologia consistente ao longo do tempo, com uma quantidade constante de observadores na mesma área geográfica e as mesmas 1.392 horas dedicadas à pesquisa por ano.
Com isso, os pesquisadores buscam entender o que tem causado esse novo comportamento nos botos da Amazônia. “Será algo disfuncional? Poderia ser classificado como um comportamento patológico?”, questiona o artigo publicado pelos pesquisadores.
Hipóteses
Por enquanto, o que eles acreditam é que a atitude realmente não está ligada à hipótese de seleção sexual. “Várias linhas de evidência indicam que, de fato, o comportamento pode ser disfuncional ou talvez alguma forma de exibição masculina. Machos desta espécie são conhecidos por usar objetos para exibição sociossexual, como maneira de cortejar as fêmeas, e é possível que os filhotes estejam simplesmente sendo usados como mais objeto de exibição”, diz a cientista da RECN.
Outra hipótese está ligada à redução da população de botos na Amazônia: a cada dez anos, a quantidade de indivíduos cai pela metade. “Ainda que não tenha sido observada uma relação direta de causalidade, é justo inferir que a estrutura social da espécie tem sido severamente afetada por essa redução populacional”, diz Vera. A pesca é a atividade que mais contribui para o declínio da quantidade de indivíduos.
Karynna Tolentino, especialista em Conservação da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário, ressalta a importância do conhecimento científico para traçar estratégias e políticas públicas eficazes para proteger a espécie. “Até pouco tempo atrás o boto da Amazônia não tinha status de conservação definido. Eles voltaram a fazer parte da lista vermelha da IUCN em 2018, como espécie ‘em perigo’, depois de serem retirados em 2008, por falta de dados populacionais”, conta a bióloga, lembrando ainda que o boto costuma ser usado como isca para a pesca da piracatinga, atividade proibida por normativa ambiental (MPA/MMA 06/2014) até julho de 2022.
Os botos
Os botos têm uma característica única entre os golfinhos de rio: os machos são maiores do que as fêmeas – em média, 16% mais longos e 55% mais pesados. De forma geral entre as espécies, o tamanho do corpo relativamente maior costuma ser um indicador de agressão entre machos, porque confere vantagem competitiva durante as disputas. O alto nível de dano físico e cicatrizes em botos adultos do sexo masculino também é indicativo de conflitos intensos como competição pelo acesso às fêmeas.
São também animais de vida longa (35 anos em média) e com comportamento reprodutivo polígamo. As fêmeas têm um período de gestação de pouco mais de um ano, com cuidados maternos prolongados e de perfil protetor, mantendo-se próximas a seus filhotes durante todo o primeiro ano de vida. No entanto, quando os filhotes são atacados por machos adultos, elas não têm como os defender.