Enquanto imagens das primeiras pessoas sendo vacinadas contra a covid-19 na Inglaterra, nos Estados Unidos  e na Rússia  circulam pelo mundo, e outros países começam a implementar um cronograma para a vacinação de seus moradores, os brasileiros ainda se veem em meio a uma disputa política que opõe governadores ao presidente da República e leva à Justiça planos e estratégias de imunização, sem perspectiva de quando a vacina chegará.

De um lado da “guerra da vacina” estão o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados. O presidente nega a seriedade da pandemia desde o seu início e não observa as recomendações científicas e dados sobre a evolução da doença. Em março, disse que a covid-19 era uma “gripezinha” e, agora em dezembro, em meio ao repique no número de casos, que o Brasil estava no “finalzinho” da pandemia.

Do outro lado, estão governadores e prefeitos que querem assegurar a vacina o mais rapidamente para sua população, em um embate que antecipa a disputa de 2022 e cria fraturas no federalismo brasileiro. O maior antípoda de Bolsonaro no tema é o governador de São Paulo, João Doria, que apostou no desenvolvimento da vacina Coronovac, por meio de uma parceria entre o Instituto Butantan e a chinesa Sinovac, e tem usado o assunto para reforçar sua polarização com o presidente.

No meio da disputa, está a população brasileira, que observa o aumento diário no número de infectados e mortos pela covid-19, que já chegam a 6,9 milhões e a 181 mil respectivamente. E, exceto a população de São Paulo, não sabe ainda quando começará a ser vacinada.

Diante de tanta incerteza, o Supremo Tribunal Federal foi convocado a se posicionar. Provocado por ações de partidos políticos, a Corte exigiu que o governo federal submetesse um plano de vacinação. O Ministério da Saúde enviou  o documento no sábado (12/12), sem indicar datas de início do programa de imunização. No domingo (13/12), o ministro Ricardo Lewandowski deu 48 horas para o governo apresentar a data de início da vacinação.

Nesta segunda-feira (14/12), o vice-presidente Hamilton Mourão disse a jornalistas que anunciar uma data de início seria “precipitado”. “Vamos lembrar que as principais agências certificadoras do mundo não deram certificação para nenhuma vacina ainda, tem uma autorização experimental para essa da Pfizer. Se começar a dar problema, vão ter que suspender”, afirmou.

Disputa política

Bolsonaro e Doria têm usado os processos de aprovação e as opções de vacinas contra a covid-19 como instrumentos para medir forças de olho nas eleições presidenciais de 2022. O imunizante é a única saída duradoura para colocar um fim na pandemia e em seus efeitos sociais e econômicos, que afetam o emprego, a oferta de bens e serviços e a saúde mental da população.

O governo Bolsonaro fechou no final de junho um acordo com a universidade de Oxford e a empresa farmacêutica AstraZeneca para o desenvolvimento da vacina, compra antecipada de 100 milhões de doses e transferência de tecnologia para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Os resultados da fase 3 do do ensaio clínico, porém, anunciados em 8 de dezembro, mostraram uma eficácia média abaixo da de concorrentes e despertaram dúvidas sobre a credibilidade dos números.

Duas semanas antes de o governo federal anunciar o acordo com Oxford/AstraZeneca, Doria já havia fechado uma parceria com a chinesa Sinovac para testes clínicos, compra de doses e a transferência de tecnologia para que a Coronavac fosse produzida no Instituto Butantan.

A Sinovac e o Butantan ainda não apresentaram o resultado da fase 3 dos ensaio clínicos, que indicam a eficácia, nem solicitaram registro à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas Doria apresentou na última segunda-feira (7/12) um cronograma de vacinação no estado que começa a partir do dia 25 de janeiro, data em que se comemora a fundação da capital paulista.

O Instituto Butantan e a Sinovac devem apresentar o estudo completo da fase 3 do ensaio clínico da Coronavac na terça-feira da próxima semana (22/12), e pedirão o registro simultaneamente à Anvisa e à Administração Nacional de Produtos Médicos (NMPA), o órgão chinês responsável pelo registro de vacinas.

A China deve levar três dias para dar o registro definitivo para a vacina. A partir desse momento, se a Anvisa não autorizar o uso do imunizante, o governo paulista deve recorrer ao Supremo para aplicar uma lei aprovada em maio que considera a autorização “concedida automaticamente” caso a agência não se manifeste em até três dias sobre pedido de registro de vacina ou medicamento contra a covid-19, segundo informou a Folha de S.Paulo. Esse dispositivo vale para vacinas aprovadas por uma das quatro agências estrangeiras de referência: além do órgão da China, as agências dos Estados Unidos, da União Europeia e do Japão.

Interferência na Anvisa

A pressão de Doria sobre o governo federal está relacionada à sua ambição política, mas também a receios de que Bolsonaro possa interferir politicamente na Anvisa para bloquear ou atrasar a aprovação da Conovac, que o presidente já chamou de “a vacina chinesa de João Doria”.

Três sinais apontaram nessa direção. Em outubro, Pazuello anunciou um acordo para a compra de 46 milhões doses da Coronavac, logo depois revogado por Bolsonaro, que anunciou no Twitter que a vacina chinesa não seria comprada pelo governo federal.

Em 10 de novembro, Bolsonaro comemorou uma decisão da Anvisa que suspendeu temporariamente os estudos clínicos da Coronavac após a morte de um participante dos testes, que depois se mostrou não relacionada à vacina. “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, afirmou o presidente.

No dia seguinte, Bolsonaro indicou para assumir um assento na Anvisa o tenente-coronel Jorge Luiz Kormann, que não tem formação em saúde e, em seu perfil no Twitter, já havia manifestado críticas à Coronavac e à Organização Mundial de Saúde. Sua indicação ainda precisa ser referendada pelo Senado.

A postura do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, também provoca desconfiança. Na terça-feira passada (8/12), em reunião com governadores, ele disse que a Anvisa levaria cerca de 60 dias para aprovar a aplicação em massa de qualquer vacina contra a covid-19. No dia seguinte, Pazuello mudou sua versão e disse que a Anvisa poderia aprovar o início da vacinação ainda neste ano, em caráter emergencial.

Pacto federativo

O anúncio do cronograma de vacinação por Doria também teve repercussões no equilíbrio federativo. Governadores de 12 estados e prefeitos de diferentes partes do país contataram o Butantan para avaliar a possibilidade de comprarem diretamente doses da vacina Coronavac, pondo em xeque a tradição de os programas de vacinação serem coordenados em âmbito federal.

O governador Ronaldo Caiado (DEM), atualmente aliado de Bolsonaro, disse que o governo federal poderia confiscar vacinas dos estados para centralizar a sua distribuição. Mais tarde, o Ministério da Saúde se pronunciou sobre o caso, negando ter manifestado a intenção de confiscar imunizantes que forem comprados pelos governos estaduais.

Outro tema que opõe governadores e o presidente é a obrigatoriedade da vacinação. Nesta quarta-feira (16/12), o STF deve decidir se os governos municipais e estaduais podem determinar a vacinação obrigatória dentro de suas divisas, ou se tal definição cabe apenas ao governo federal. Bolsonaro já se manifestou contra a obrigatoriedade.

O plano do governo

O documento enviado pelo Ministério da Saúde ao Supremo tem quatro etapas, para a aplicação de 108 milhões de doses, e vale apenas para grupos prioritários. Nenhuma das fases tem datas, e o texto lista como “garantidas” vacinas que ainda estão sendo negociadas pelo governo. O governo diz que só poderia definir datas após uma vacina obter o registro da Anvisa.

Na primeira fase, seriam imunizados trabalhadores da área da saúde, pessoas com 75 anos ou mais, indígenas e pessoas com 60 anos ou mais que trabalhem em instituições para idosos, como casas de repouso. Na segunda fase, pessoas de 60 a 74 anos, na terceira, pessoas com comorbidades e, na quarta, professores, profissionais das forças de segurança e salvamento e funcionários do sistema prisional.

O texto afirma que “o Brasil já garantiu 300 milhões de doses de vacinas covid-19 por meio dos acordos”. “Fiocruz/AstraZeneca: 100,4 milhões de doses, até julho de 2020, mais 30 milhões de doses/mês no segundo semestre; Covax Facility: 42,5 milhões de doses; Pfizer: 70 milhões de doses (em negociação)”, aponta o documento. No entanto, há nessa lista vacinas cujo fornecimento ainda depende de negociações, como o caso do imunizante da Pfizer, desenvolvido em parceria com a alemã BioNTech.

 

Fonte: Deutsche Welle (DW)