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Sputnik perguntou a um filósofo, um humorista e um compositor erudito: por que o futebol é interessante e de onde vem o fascínio pela Copa do Mundo?

Em tempos de Copa do Mundo, a sociedade se divide entre aqueles que se aglomeram em torno das telas — para acompanhar com reverência religiosa todas as partidas transmitidas com primor pela FIFA — e aqueles que gostariam de se refugiar em outro planeta.

A necessidade de asilo político extraterrestre se faz uma metáfora adequada, se considerado o fato de que os clamores das torcidas podem irromper a todo momento de praticamente qualquer janela ao redor do mundo. Isso sem mencionar as proximidades dos estádios ou bares lotados. As pessoas torcem com a mesma intensidade em Moscou, Paris, Tóquio, Rio de Janeiro ou Catmandu.Uma vez em quatro anos o futebol se torna onipresente. Escapar completamente desse ritual internacional é quase impossível.

Se não pode vencê-los junte-se a eles, dizem alguns. Mas o que fazer se o objeto de culto de multidões não é seu lance? Se for difícil superar a ideia de que são só “22 marmanjos correndo atrás de uma bola”?

Sputnik não tem essa resposta. No entanto, conversamos com pessoas de diferentes áreas que entendem e gostam de futebol para tentar iluminar um pouco os encantos desse jogo e desse evento esportivo.

Paixão que atravessa séculos

O futebol como conhecemos hoje foi criado na Inglaterra, em 26 de Outubro de 1863, durante a primeira reunião da The Football Association (Associação de Futebol).

A paixão das pessoas pela pelota, no entanto, vem de longe. Segundo a própria Federação Internacional de Futebol (FIFA), jogos com bola já eram norma na China no século III A.C., como no caso do Cuju.

No Japão antigo, um pouco mais tarde, foi criado o Kemari, praticado até os dias de hoje, inclusive.

Nas Américas, por outro lado, havia o Jogo de Bola Mesoamericano, com características rituais. E na Itália também existe uma versão mais antiga do futebol, o Calcio Storico, no qual grupos de diferentes bairros disputam partidas de grande brutalidade, mas muito populares.

“Na Itália, aliás, o futebol é chamado Calcio até hoje”, pontua o professor de filosofia do Colégio Pedro II, Germano Nogueira Prado, em conversa com Sputnik Brasil.

“O futebol é uma espécie de mitologia do tempo presente. É onde a gente investe certas coisas que a gente investia antes nos mitos. Pelo menos é assim no Brasil e boa parte dos países do mundo. É onde a gente forma os ídolos. Onde a gente vivencia teatralmente, em forma de espetáculo, os elementos épicos, trágicos e cômicos, sobretudo quando você vai no estádio e experimenta isso. É onde a gente vive a catarse de uma série de formas de violência também”, explica o professor, se referindo ao fenômeno das torcidas organizadas.

Ganhando o mundo

Em seu livro “Como o futebol explica o mundo“, o jornalista Franklin Foer afirma que o esporte surgiu na época em que a Inglaterra possuía um império. Isso, segundo ele, explicaria a rápida expansão do jogo. Em suas viagens ao redor do mundo, os britânicos o exportaram em questão de décadas para todos os continentes.

De fato, o futebol é dotado de um certo elemento universal.

“É uma espécie de linguagem comum. É muito frequente ver reportagens que mostram pessoas em lugares muito diferentes, sem saber falar a língua. Mas quando se joga uma bola no meio delas, elas sabem o que fazer. Elas começam a jogar e entendem o jogo”, afirma Germano Nogueira Prado.

Então, já em 1904, foi fundada a FIFA. E em 1930 foi realizada a primeira edição da Copa do Mundo, em Uruguai. A partir de então, a popularidade do evento só fez crescer, confirmando assim a vocação do mega-evento.

“A FIFA, por exemplo, tem mais países filiados do que a ONU”, confirmou o interlocutor da Sputnik. Ao todo, agrega 209 organizações esportivas privadas associadas, representando o esporte em países ou territórios.

Mas afinal, o que esse jogo tem de tão especial?

Como o próprio nome já diz, o futebol é jogado primariamente com os pés. Entre os jogos mais populares da atualidade, é o único com essa característica. Talvez essa seja uma das razões das partidas serem muito imprevisíveis. Nem sempre o mais forte vence.

“É um esporte com nível de imprevisibilidade muito grande. É um esporte que pode ter times favoritos, mas esses favoritos podem não vencer”, destaca o humorista Marcelo Adnet.

“É um esporte que sempre traz uma dúvida e por isso uma expectativa muito grande. E hoje em dia o nível é muito alto. É um esporte parelho. Um único detalhe pode fazer você levar um gol, decidir o jogo ou marcar um gol a seu favor”, completa ele, que já manteve uma coluna sobre futebol no jornal o Globo.

“O gol é um momento raro de gozo”, conclui ele, citando uma das definições apresentadas no livro de Eduardo Galeano, “Futebol ao Sol e à Sombra”.

Germano Nogueira Prado concorda. “É um esporte da dimensão da contingência. No qual existirem diversos lances gratuitos e não justificáveis em termos de resultado do jogo. No basquete, por exemplo, praticamente todo lance é um ponto. Muitos poucos lances são desperdiçados. No vôlei e tênis também tudo gira em torno da pontuação. No futebol, por outro lado, o jogo todo pode transcorrer sem pontuação, e tudo se define em um único lance. Às vezes com vitória de um time mais fraco”, acrescenta.

O mesmo pode se dizer da Copa do Mundo, argumenta Marcelo Adnet. “Acho que o futebol é um jogo que tem muitas variáveis. Quando você olha para uma Copa do Mundo ainda tem outras tantas. São povos diferentes, de tipos físicos diversos e com jogadores de estilos diferentes, seleções com escolas diferentes, de jeitos diferentes. Nacionalismos e patriotismos sendo mostrados de maneiras diversas. Encontros de culturas. É um clima muito olímpico o da Copa do Mundo, mas também é uma reunião de culturas muito grande”.

Espetáculo para todos os gostos

Ir  a um estádio e assistir uma grande partida, bem como bater uma bola, talvez sejam as formas mais fáceis para entender de forma mais evidente a universalidade e a singularidade do futebol. Ao contrário de outros esportes, que exigem ou privilegiam um determinado tipo de corpo, qualquer um pode ser craque: alto, baixo, magro ou gordo.

“Ronaldo jogou acima do peso. O Walter, do Atlético Paranaense, também era gordinho e fazia muitos gols”, argumenta o professor do Colégio Pedro II.

O Mané Garrincha tinha pernas tortas. Maradona era baixo. Zico era muito magro no início da carreira. E os exemplos não param por aí.

Por outro lado, para quem o apelo físico não basta, o futebol também guarda o seu lado estético.

“O ambiente de estádio de futebol é uma cacofonia generalizada. Uma torcida cantando uma coisa, do outro lado se canta outra. Vários timbres se revelando. Dentro do campo as pessoas falam. O toque da bola soa. É mágico! É exuberante!”, diz o maestro e compositor erudito Sergio Barboza.

“A relação do futebol com a música se dá por conta dos muitos elementos relacionados com a percepção sonora e com o ritmo. Os árbitros e bandeirinhas dependem da audição para ouvir o toque na bola quando um jogador comete uma infração. São sons que estão no ambiente do futebol. O próprio apito, o significado dele varia para cada lance: forte, fraco, longo, curto”, advoga o compositor.

“Já os jogadores, para ter o domínio e saber manejar a bola precisam do ritmo. Esse controle não é livre. O jogador precisa conhecer a temporalidade da bola e lidar com ela no ritmo. Ele corre com ela e precisa saber o ritmo do passo. Então isso é muito musical”.

Barboza diz não ser o único a pensar assim. Na dança, no teatro e na música o futebol foi retratado em diversas ocasiões.

“O compositor russo Shostakovich tinha uma paixão absurda pelo futebol. Não perdia um jogo do Zenit. E ele começou a compor uma obra [sobre futebol] que acabou se transformando no balé Idade de Ouro”, destaca o compositor brasileiro.

“Era uma coisa mágica esse trabalho. A dança é muito interessante. Em uma parte da peça tem uma partida de futebol acontecendo dentro do teatro. Com apito, torcida, infração e gol. Tudo isso é uma música hiper-contemporânea”, completou Sérgio Barboza.

Enredo e narrativa

Além da musicalidade e do aspecto plástico, outra faceta a ser destacada trata do enredo e da narrativa. Segundo alguns torcedores, um campeonato às vezes pode ser mais emocionante que uma série de TV.

“A palavra mito vem do grego e significa narrativa. O futebol em si, e na forma como o campeonato se desenvolve, é composto por enredo com personagens, se dá no tempo e espaço, envolve um certo clima”, argumenta Germano Nogueira Prado.“Eu acho que a narrativa do futebol envolve tanto quem assiste como quem está envolvido nos jogos. Tem a ver não só com o que acontece dentro do campo, que sempre é algo improvisado, que envolve elementos não programados”.

Segundo ele, alguns afirmam não ser possível falar em estratégia no futebol. Por outro lado, se fala muito em estilo de jogo, que é algo da ordem da narrativa. “Você tem um estilo de jogo que, a medida que o jogo se desenrola, decide localmente quais são as decisões sobre os caminhos que o enredo vai tomar”, diz o professor de filosofia.

“O próprio jogo é uma narrativa que sempre pode ter um lance surpreendente. Uma espécie de teatro com muitas dimensões de improviso, de casos. E cada campeonato é uma narrativa específica que envolve personagens que inclusive são produzidos midiaticamente. Que são jogadores destacados pelo desempenho em campo”, explicou o entrevistado.

Ele lembrou de uma frase de Chico Buarque, segundo qual na memória dele os craques ficam cada vez mais craques com o passar do tempo.

“Eu acho que o futebol tem isso. A busca pelo gol”, diz Adnet.

“Se eu tivesse de convencer alguém que não gosta de futebol de que [o jogo] é legal, acho que falaria dos momentos de emoção. Como no caso de um time que lutou e é eliminado. Ou de um favorito que não ganhou. Ou de um time que ninguém esperava que fosse ganhar, mas que ganha e passa de fase. São esse momentos de grande emoção, comemoração e catarse: esses momentos são muito especiais e acontecem em todas as Copas. Todo campeonato tem o seu vilão, o artilheiro, o azarão. E, para quem não gosta do jogo em si, acompanhar o enredo é uma opção”, concluiu o humorista.

História, crônicas e humorNo futebol, o universal e o singular sempre dialogam com algo pessoal e particular, segundo Germano Nogueira Prado. Todos guardam na memória um jogo preferido ou uma história engraçada relacionada ao jogo.

Sérgio Barboza, por exemplo, lembra de um caso durante os seus estudos em Kiev, no Conservatório Tchaikovsky. Durante uma aula de educação física ele foi informado de que jogaria uma partida de futebol.

“Pensei que seria uma pelada de alunos de música. Mas nós levaram para um estádio de futebol. Quando eu vejo, ganhei uma chuteira, uma camisa e um short”, lembra o maestro. Era uma partida oficial contra a faculdade de Engenharia.

“Tinha ambulância dentro, massagista. Eu pensei: não acredito que isso acontece assim na União Soviética. Nunca imaginei entrar em um estádio de futebol e jogar uma pelada assim. O resultado foi uma catástrofe. Perdemos de 6 a 0. Para nós músicos as mãos são instrumento de trabalho”.

Marcelo Adnet, por outro lado lembrou de um fato curioso relacionado à história do futebol no Brasil.

“O nome gandula, que a gente usa aqui, era o nome de um jogador na Argentina (Bernardo Gandulla, jogou no Vasco da Gama), que ia sempre pegar a bola sempre que alguém isolava. Ele era muito solidário. E do nome do jogador surgiu o nome gandula. São aqueles meninos que pegam a bola do lado de fora do campo”, explicou o ator.

Germano Nogueira Prado, também recorreu à história, de forma bem a calhar em meio à Copa na Rússia.

“Na Copa de 1958, logo antes da partida com a URSS, o técnico Feola estava fazendo a preleção dizendo que fulano devia fazer isso, aquilo, aquilo outro e tal.  A certa altura, o Garrincha, do alto da sua genial simplicidade, perguntou algo como: ‘Ok, seu Feola… mas o senhor já combinou com os russos?’. Essa frase se tornou proverbial”, revela o professor de filosofia.

“O senhor já combinou com os russos?”.

“Mitos são elementos orais que você passa de geração em geração e que vão adquirindo o ar sagrado a medida que se distanciam no tempo. E dependem de poetas inspirados para manter isso de geração em geração”, acrescenta o professor.

No Brasil e no mundo diversos filósofos, escritores e cronistas fizeram jus a esse aspecto do futebol. Antonio Negri, José Ortega y Gasset e Eduardo Galeano estão entre eles. E no Brasil, claro, não dá para deixar de mencionar nomes como Nelson Rodrigues e João Saldanha: dois grandes cronistas do jogo que enxergaram muito para além dos estádios.

“Além de ser uma experiência muito diferente de outros esportes, talvez o futebol seja uma metáfora para aquilo na vida ainda escapa à lógica da mercadoria, do capitalismo e da contabilização de tudo”, conclui Germano.