Pedro Augusto Pinho*
Quem trai quem? Tenho um grande amigo, inquestionável nacionalista, para quem o mameluco senhor de engenho Domingos Fernandes Calabar não pode ser aviltado como exemplo de traidor do Brasil. Não lhe faltam razões.
Não havia o Brasil, um estado livre e soberano, mas uma colônia, mudada, por razões estrangeiras, de colonizador e que observava a disputa de suas terras por potencias coloniais. Apoiar qualquer delas não seria defender um país livre; portanto Calabar não agiria como Mathias de Albuquerque, defensor e membro do estamento oficial do colonizador lusitano. Mas também não precisava, como o potiguar Felipe Camarão, tomar partido do colonizador mais antigo que, por quase um século, só fizera explorar as riquezas naturais do Brasil.
O que é curioso, e esta posição de meu amigo o destaca, é não se colocar a questão da defesa nacional. Esta se confunde com os impérios colonizadores que reconhecemos em Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos da América (EUA) e no sistema financeiro internacional – que denomino “banca”. Façamos justiça ao historiador brasileiro Gustavo Barroso que, no século passado, já descrevia o Brasil como “colônia de banqueiros”.
Não tomarei o precioso tempo de meus leitores, narrando as traições em nossa história. Vou colocar algumas questões de nossa contemporaneidade.
O texto, abaixo transcrito, é de uma Portaria do Ministério da Fazenda, com destaques meus:
“a) concede isenções de Imposto de Renda às firmas consultoras de planejamento, projeto de engenharia, domiciliadas e operando exclusivamente no exterior;
b) concede, igualmente, isenção de imposto para os serviços prestados por empresas estrangeiras, quando em consórcio ou associação com firma nacionais, aplicando-se sobre a parte destas últimas a taxação legal;
c) arbitra em 20% o lucro operacional de agentes, representantes ou subsidiárias de firmas estrangeiras funcionando no País;
d) mantém o Imposto de Renda legal (28%) para as firmas nacionais.”
Seria um caso do tão atualmente propalado ato de corrupção? Mas, certamente, não podemos atribuir esta Portaria ao interesse nacional. Logo, só resta concluir que se trata de uma traição, um crime de lesa Pátria. Ou seja, medida que beneficia claramente o interesse estrangeiro em face do interesse nacional.
Este ato foi assinado, em 8 de junho de 1966, pelo Ministro da Fazenda Otávio Gouveia de Bulhões – Portaria nº 184.
Não foi um ato isolado, em defesa do interesse estrangeiro, se o caro leitor se interessar, há inúmeros exemplos de atuação de Ministros da época, como do Planejamento, da Viação e Obras Públicas e que estão no livro do professor e historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, “Estranhas Catedrais” As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988, Editora da UFF, Niterói, 2014.
Neste livro há um fato inquestionável, assim descrito: “Logo após o golpe de estado de abril de 1964, a maior parte dos postos de comando no aparelho de Estado foram preenchidos por quadros do Ipes e da Consultec, representando os interesses dos capitais privados internacionais e seus associados”.
O que era o Ipes? O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) foi fundado, em 29 de novembro de 1961, por Augusto Trajano de Azevedo Antunes (da CAEMI) e Antônio Gallotti (da Light). Como é hoje do conhecimento geral e está no “1964: a conquista do Estado“, de René Armand Dreifuss (Vozes, Petrópolis, 3ª ed. 1981), o IPES recebia do governo dos EUA a maior parcela de seus recursos. Havia outros “doadores”, embora com valores insuficientes para sua abrangente ação. Apenas exemplificando os outros: Refinaria União, Icomi, Listas Telefônicas Brasileiras e pessoais, como do banqueiro José de Magalhães Pinto.
Disso resultaram medidas que levaram ao fechamento inúmeras empresas brasileiras e o domínio de setores inteiros de nossa economia por estrangeiras.
Acaso não constituiria esta dependência econômica, posteriormente também política e até educacional, uma traição ao Brasil?
Estas traições não decorrem apenas de golpes militares ou judiciais, como o de 2016. Também há golpes eleitorais, traições à vontade nacional, como o que elegeu Fernando Collor e o que aprovou a reeleição de Presidente da República.
De acordo com artigo, publicado no Jornal Virtual Brasil 247, do deputado federal por São Paulo, Valmir Prascidelli, “Temer trai o Brasil e entrega patrimônio a estrangeiros” (30/11/2017): “The Guardian, no último domingo, 19, a partir da investigação realizada pelo Greenpeace, que buscou e denunciou o interesse e o lobby de petrolíferas internacionais na flexibilização das legislações ambientais em vários países. No caso do Brasil, o jornal publicou, entre outros documentos, um telegrama entre a chancelaria do Reino Unido ao governo Temer, para que atendesse aos interesses das petroleiras Shell e Premier Oil na área do Pré-sal.
De acordo com denúncia do Greenpeace, Temer aceitou e cedeu a pressão inglesa renovando, até 2040, o Repetro que isenta a importação de equipamentos da indústria do petróleo. Não satisfeito, o presidente ainda editou a MP 795, concedendo isenções fiscais para as petroleiras, abrindo mão de o país receber mais de R$ 1 trilhão em impostos”
Isenção para empresas estrangeiras como fazia Gouveia de Bulhões no Governo Castello Branco.
No mesmo Brasil 247, seu colunista Leonanrdo Attuch (O Brasil de Temer, um governo a serviço da Shell, em 25/11/2017) acrescenta: “O protagonista deste episódio é Paulo Pedrosa, secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia. Segundo um telegrama da embaixada britânica, Pedrosa se reuniu com Greg Hands, ministro do Comércio do Reino Unido, e prometeu fazer lobby, no governo brasileiro, em defesa de petroleiras como a Shell e a BP. Dito e feito, antes dos leilões do pré-sal, foram removidas as exigências de conteúdo nacional na compra de equipamentos, as leis ambientais foram flexibilizadas e as empresas ainda ganharam isenção fiscal por mais de vinte anos”.
Pronto, fechada uma cadeia (ups!) de traição. Calabar, de traição discutível, foi esquartejado, Bulhões morreu aos 84 anos, rico e reverenciado, o que ocorrerá aos traidores de hoje?
Norbert Elias, o grande estudioso do processo civilizatório, escreve sobre a “psicologia histórica” como a investigação a ser desenvolvida para compreender melhor situações que a sociologia não consegue. Um caso seria dos traidores?
Escondidos sobre o manto ideológico, o Brasil sofreu inúmeras traições. Nunca, obviamente, pelo povo; sempre vítima. As traições vem das autoridades, principalmente as golpistas.
Vejamos o exemplo da informática, cuja atual dependência tanto nos humilha.
Ivan da Costa Marques (Brazil and its unenlightened despots: 1979/1980, 2012 IEEE), Vera Dantas (Guerrilha Tecnológica: a verdadeira história da política nacional de informática, Livros Técnicos e Científicos, RJ, 1988) e Tullo Vigevani (O Contencioso Brasil X Estados Unidos da Informática, EDUSP, Ed. Alfa-Omega, SP, 1995 – em especial o Bloco VIII O Bloco da Política Nacional de Informática) narram o uso do anticomunismo para impedir o desenvolvimento da informática brasileira.
Os principais atores foram, sob o abrigo do General Danilo Venturini, secretário do Conselho de Segurança Nacional (CDN), o Embaixador Paulo Cotrim – que deu nome à Comissão Cotrim para demolir a política nacional de informática – os coronéis Joubert Brízida de Oliveira, Edson Dytz, Ezil Veiga Rocha, o presidente do CNPq, José Dion de Melo Telles, e Antonio Carlos Loyola Reis. Quer pela influência da IBM e da Burroughs – que agiram com conhecimento de todos profissionais do ramo – quer por suposta ignorância de seus atos (difícil mas não impossível em pessoas naquele nível de atuação), quer por suborno, sob várias formas, inclusive nomeação para cargos públicos mais relevantes, quer mesmo por corrupção financeira, estas pessoas, no momento importantíssimo da mudança de conceito para a computação pessoal (personal computer), colocaram um fim na informática brasileira.
Apenas recordando, o Brasil foi o único país não desenvolvido que fabricou o minicomputador com todos recursos nacionais, de hardware e de software.
A atual traição dos membros de todos os poderes ao desenvolvimento e à soberania do Brasil é destes casos que mereceriam uma investigação psicológica.
A situação mundial de hoje é muito diferente daquela do golpe de 1964. Naquele havia o objetivo nacional dos EUA, encoberto por uma questão ideológica, de expansão econômica colonizadora. Agora trata-se de um projeto global de dominação por um sistema; a banca, o sistema financeiro internacional.
Octavio Ianni, no artigo “O declínio do Brasil-Nação”, escreve: “Esta é a ironia da história: o Brasil nasce no século XVI como província do colonialismo e ingressa no século XXI como província do globalismo”.
Trai-se, agora, transferindo um trilhão de reais do desenvolvimento brasileiro, oriundos do pré-sal, para os bolsos dos acionistas da Shell, BP, Premier Oil e petroleiras estrangeiras. É traição retirar dos aposentados suas míseras aposentadorias para engordar os lucros dos banqueiros. É traição esconder-se em filigranas jurídicas para impedir o saque que os poderes executivo e legislativo promovem das riquezas naturais e do trabalho dos brasileiros.
Vivemos no país governado (os três poderes) pelos Joaquim Silvério dos Reis.
*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado