Por Maria Cecília Freire
Conhecido como “o mais visual dos poetas brasileiros”, João Cabral de Melo Neto criou em sua escrita uma arte de ver singular, fugindo completamente à discursividade que o próprio autor via como um grande mal para a poesia. Morte e Vida Severina (1954-1955) faz parte de uma tríade, junto com O rio (1953) e O cão sem plumas (1949-1950), passando pela mesma realidade: o rio Capibaribe indo em direção ao mar, com a vagarosidade dos retirantes que fogem da seca do sertão e agreste, seguindo rumo ao litoral. O rio dos três poemas é o mesmo, em diferentes pontos de vista dos quais apresentam o rio como narrador de sua prosa, em Morte e Vida Severina temos a obra mais popular e social, de modo que vai mostrar os leitores o caminho percorrido pelo retirante Severino que segue o curso do rio até Recife.
Logo no início da trajetória do retirante, da qual o levaria para um lugar melhor e com melhores condições, nota-se a falta de identidade individual que Severino tem em relação a si mesmo quando se apresenta, como neste trecho retirado da obra:
“Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra
no mesmo ventre crescido
sob as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta”
Contudo, é importante analisarmos que o personagem é uma representação ao sujeito coletivo, como também representado na obra:
“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida
morremos de morte igual
mesma morte severina
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia”
A questão de pertencimento e a crise de identidade em que o personagem Severino vive, ora referindo a si mesmo como sujeito individual, ora como Severino povo retirante, faz parte de uma consciência social presente na produção literária destacando a desigualdade social e a injustiça ao decorrer de seu caminho.
Em sua viagem para fugir da miséria e morte que persegue o sertão paraibano e encontrar no litoral, melhores condições de vida, Severino passa por diferentes regiões, como o Sertão, Agreste e Zona da Mata e se dá conta que a morte segue lhe esperando em cada lugar que passa, deixando claro que os problemas que o fizeram sair de sua região de origem se estendem por todo caminho, marcando a certeza da morte e a incerteza da vida.
O regionalismo presente na obra tem como objetivo reforçar a identidade cultural nordestina, bem como analisar os aspectos sociais da obra. A ambivalência que se mostra durante o poema, traz um forte apelo social no Auto de Natal, analisando a vida e a morte, a resistência e a luta dentro do regionalismo nordestino da década de 50 que mostra que, segundo o sociólogo e crítico literário, Antônio Candido, “o regionalismo foi e ainda é uma força estimulante na literatura da América Latina”. Para o sociólogo, em A Educação Pela Noite e Outros Ensaios (1989), o regionalismo na literatura ficcional surgi assinalando as peculiaridades locais e mostra cada uma delas como outras tantas maneiras de ser brasileiro.
A religiosidade como em um auto de natal pode ter diferentes características e objetivos, como em O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, no qual o aspecto cômico da obra junto com o religioso denunciam e criticam os vícios, desigualdades e violência presentes na sociedade, bem como a crítica às instituições sociais, aos costumes e preconceito.
A forma que João Cabral de Melo Neto representa o cânone religioso para a cultura nordestina, usa a mensagem bíblica referente à esperança na vida para o povo do sertão nordestino Morte e Vida Severina (1954-1955), é um dos maiores cânones da literatura brasileira, explorando o regionalismo, as diferenças sociais, a arte e a fé popular, acompanhado de uma prosa poética impecável. O autor escreveu sobre o sofrimento humano, a miséria e a pobreza, de forma racional e com perfeita exatidão em suas palavras. Tornando-se um dos nomes mais importantes para a literatura nacional, sua obra é uma referência cultural na vida dos brasileiros, principalmente, na dos nordestinos.