Sentados no conforto de seus carrões importados, com o ar condicionado a toda, gente branca e rica conclama o trabalhador para que retorne à labuta, espremidos nos vagões e ônibus do transporte público, enquanto eles mesmos não saem de dentro dos carros. A orientação dos organizadores é justamente essa: não saiam dos veículos. Ué, mas não é só uma “gripezinha”? Deveriam fazer, em vez de carreatas, passeatas. Mas cadê coragem?
Os “carreaters” dizem que “querem trabalhar”. Mas eles trabalham? Essa gente incapaz de liberar a empregada para que fique em casa porque não consegue limpar a própria privada, lavar a própria louça, fazer a própria comida ou cuidar do próprio filho, quer mesmo “voltar a trabalhar”? Ou será que eles querem que VOCÊ volte ao trabalho?
Em Curitiba, na última sexta-feira, tiveram a desfaçatez de declarar coisas como: “Eu preciso trabalhar. Ou morro de fome ou morro pelo vírus!” Deviam pelo menos usar palavras de ordem mais sinceras em vez de fingir estarem preocupados com o Brasil: “volte ao trabalho, quero garantir minha viagem a Miami este ano”; “lugar de escravo não é na quarentena, é no tronco”; “a escolha é sua: coronavírus ou demissão por justa causa”; “fim da quarentena já! Quem vai lavar minha BMW de meio milhão?”
A pandemia do coronavírus nos traz muitas perguntas sobre a sociedade em que vivemos. As palavras do papa Francisco, diante de uma praça de São Pedro historicamente vazia, ressoam em minha mente: “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.
A elite brasileira parece surda aos apelos do papa e segue em sua avidez descontrolada por lucro. Por que os ricos jamais estão dispostos a dar sua cota de sacrifício em nome da sociedade? Por que, ao contrário, exigem que sejam sempre os pobres a se sacrificarem? O que custa para um empresário destes segurar a onda durante dois meses, até passar a pandemia? Por que prefere cobrar a fatura do trabalhador? Egoísmo, falta de empatia, usura.
Parafraseando a famosa sentença que Nelson Rodrigues, de galhofa, atribuía a Otto Lara Resende (“o mineiro só é solidário no câncer”), podemos dizer, sem medo de errar: a elite brasileira não é solidária nem no coronavírus.