Noite mal dormida, ao saber da viagem derradeira do Gago, o nosso Gaguinho, jornalista, fotógrafo, cineasta… amigo e irmão de vera desde os anos 70, daquelas amizades incondicionais e sem nódoas, um amante de belas mulheres, parceiro de sonhos, aventuras, projetos, jornadas e confidências.
Mais um pedaço vivo de nossa baianidade perdido.
Gaguinho, com seu despojamento, andar de angoleiro, riso e convívio sedutores, conhecia cada esquina, cada sobrado, ladeira, recanto, cada batuque, cada boteco desta cidade do São Salvador da Bahia e também as águas da grande Baía de Todos os Santos e Orixás e Encantados, seus recôncavos e reconvexos. Tudo registrado e filmado pelos seus olhos graúdos esverdeados e espertos.
Mesmo com as distâncias desse viver insano nunca ficamos muito tempo sem nos falar, nos ver. Por um bom tempo ligava-me a pedir que escrevesse algo para o seu Jornal da Ilha, tabloide sem periodicidade, uma forma de resistir à estupidez do mercado e de sobreviver sem baixar as calças. A cada encontro, aquele convite para chegar no barraco que construiu devagar e na tora na aprazível Berlinque (ou era Aratuba?). Lá nos acolhia com toda alegria regada a boas pingas, resenhas dos acontecimentos do mundo e adubada com peixadas, pirão e molho lambão de pedir rede no depois. Gostava de temperos e preparos.
Pra quem não sabe, Roberto Gaguinho era irmão de Juarez, aquele do restaurante famoso do Mercado do Ouro com seu filé único, e que também já nos deixou. Na cozinha, a especialidade de Gago era criar pratos com o que tivesse à mão. Assim, por exemplo, inventou a deliciosa moqueca de pão. Certa feita, no apartamento onde morou no Cabula, ensinou-me cada passo do feitio da iguaria, desde o deixar as fatias do pão dormido descansando em leite de coco. Tentei fazer igual, mas quá ! Noutro dia, entre uma bebericada e outra, lhe perguntei qual era o segredo daquele famoso ‘Filé do Juarez’, tostado por fora e suculento por dentro. Ele me respondeu : – É a pa, pa, pa, ne, nela !
O fotógrafo Roberto Gaguinho gostava do sertão. Tinha o olhar aguçado e a mente de antropólogo. Ligava-se no cenário, na luminosidade e sombras do ambiente, mas enxergava além, o ser humano, o fazer, o comportamento, as expressões, os personagens, a História.
Dentre as tantas boas coisas que fez e deixou destaco o documentário “Cid Teixeira – a enciclopédia da Bahia”, até por ser um resgate da memória fantástica do nosso mestre (amigo comum e quase pai), o professor, historiador, advogado, jornalista e radialista Cid Teixeira, a quem fomos juntos visitar algumas vezes, já adoentado. Nesse documentário, dirigido por Gaguinho, Cid fala da cidade, conta histórias com aquele vozeirão e passeia de barco pelas ilhas e locais de sua infância no recôncavo. Aula deliciosa de baianidade do eterno Mestre Cid Teixeira, mulato mui amado.
Faz meses bateu saudades do véi Gaguinho, senti sua falta, queria saber de Cid também. Liguei várias vezes mas não respondeu. Que teria acontecido? Encontrei um amigo comum que me disse, sem saber direito: “Deve estar na ilha, e lá na toca é difícil atender”. Deu vontade de ir lá, mas a ilha ficou tão longe a essa altura da vida e dos acontecimentos !
O Gago esteve doente e eu não sabia. Fez uma cirurgia no coração e outra no abdome. Não aguentou. Foi-se, pediu passagem, tá no Orun. Tinha um querer bem fraterno por ele que será eterno enquanto viver.
Acordei cedo e fui caminhar, ver o mar, molhar a cabeça. Odoiá ! Vi garças brancas a pousar nas pedras e levantar voos, sabiás dando rasantes, pombos bicando a areia, peixinhos brincando nas locas, maré baixa … Tomei chuva na cara (Ora Yeyê ô!), rezei, chorei… mirei um tempo o azul infindo e deu vontade de sumir nele, ao encontro do amigo.
Valeu, Gago, obrigado irmão.

Zedejesusbarreto / 9demarço2020