Por Sandra Mercês – Foto Pedro Moraes/Sepromi

“Nós temos uma equipe multidisciplinar formada por advogadas, psicólogas, assistentes sociais que acolhem as pessoas vítimas de racismo, de intolerância religiosa e dão todas as orientações para que aquela denúncia prossiga”, Ângela Guimarães, Cientista social.

No próximo dia 20 de novembro é comemorado o Dia da Consciência Negra. Durante todo o mês serão promovidos diversos eventos para debater as diversas formas de racismo na sociedade. O último Anuário de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revelou que o Brasil teve alta de 50% nos registros de racismo em 2022.

O Notícias da Bahia conversou com exclusividade com Ângela Guimarães, secretária de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia, pasta responsável pelas políticas públicas de conscientização e combate a todas as formas de racismo no estado.

Ângela Guimarães é natural de Salvador, nascida no território negro do Curuzu-Liberdade. Cientista Social graduada pela UFBA, foi aluna especial do Mestrado em Educação – Programa de Pós Graduação em Ensino e Relações Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) no semestre 2022.1.

“Eu sou socióloga formada pela Universidade Federal da Bahia, tenho uma trajetória na luta antirracista desde 18, 19 anos, que eu venho atuando nesses movimentos negros de denúncia do racismo, de denúncia do extermínio da juventude negra, pela ampliação da participação política das mulheres negras, pelas ações afirmativas, pela saúde da população negra, e por esses números de temas que envolvem essa pauta como conjunto de reivindicações por reparação. Devido ao processo escravista, mas também pela atualidade do racismo, que ainda hoje funciona como arquitetura das desigualdades no nosso país. Então, eu chego à secretaria advinda dessa trajetória na luta social antirracista, mas também acumulando já uma certa experiência, 18 anos de experiência na gestão pública”.

A gestora que iniciou a carreira pública no município de São Sebastião do Passé, atuou no governo Jaques Wagner e também assumiu cargo na gestão federal da ex-presidente Dilma Roussef (PT).

“Eu fui responsável pela implementação do Departamento de Reparação Social em São Sebastião do Passé, nos anos de 2005 a 2007. Ali a gente implementou uma agenda de política de promoção da igualdade racial, de política para as mulheres e políticas públicas para a juventude. Depois contribuí na formulação da política estadual de juventude aqui na Bahia, no primeiro governo do governador Jaques Wagner. Na sequência, acabei atuando durante seis anos no governo da presidenta Dilma. Eu fui secretária nacional adjunta da juventude, coordenei uma série de políticas, a implementação do plano Juventude Viva, Agenda Nacional do Trabalho Decente para a Juventude, Programa de Juventude, Meio Ambiente. Coordenei duas conferências nacionais de juventude, representei o Brasil em diversos fóruns internacionais. Então acho que essa combinação da minha trajetória na luta social, desde a juventude, fui também de centro acadêmico, na universidade, presidi o diretor central de estudantes, no contexto de aprovação das cotas, na UFBA, e essa experiência também na gestão é que me traz a Sepromi”, contou a secretária Ângela.

Um movimento no Congresso Nacional, através do Senado, tenta derrubar a conquista dos povos indígenas garantidas pelo STF que derrotou a tese do marco temporal. Ângela Guimarães falou das ações da Sepromi para garantir os direitos dos povos tradicionais no estado da Bahia. 

“A gente inicia esse ano com uma grande e muito positiva novidade, que foi a criação da Superintendência das Políticas para os Povos Indígenas. Foi fruto da reforma administrativa do ano passado, depois que o Governador Jerônimo ganhou as eleições. Ele é um governador indígena que faz questão da relevância da centralidade dessa agenda no seu governo, criou a superintendência, a superintendência faz parte da Sepromi e tem trabalhado com um conjunto de ações. Então, desde o começo do ano a gente concretizou a equiparação salarial dos professores indígenas aos demais professores, abertura de mais postos de concurso, a regulamentação das carreiras, da progressão de nível desses professores. Também autorizamos em junho mais de 90 milhões de investimentos em infraestrutura nos territórios indígenas vinculados a poços artesianos, sistema de abastecimento de água, estradas vicinais. Nós temos um edital em parceria com a secretaria de Política para Mulheres voltadas as mulheres indígenas empreendedoras. Também em parceria com a SSP e a SJDH formulamos o plano de ação integrada da segurança publica em comunidades e povos tradicionais, exatamente visando diminuir e reduzir a situação de conflitos em territórios indígenas. Nossa equipe tem atuado muito na mediação de conflitos com um acompanhamento na ponta, nos diálogos junto ao Funai e ao Ministério da Justiça para acelerar o processo de demarcação desses territórios”, explicou Ângela.

No último dia 03 de novembro a cidade de Salvador sediou o Festival Internacional Liberatum, evento que propõe reflexão e celebração da cultura afro. Infelizmente, dentro do evento que recebeu celebridades e autoridades negras nacionais e internacionais para discutir questão raciais, um caso de racismo foi registrado pelo influenciador baiano Vitty, 22 anos, que revelou nas redes sociais que um rapaz branco, apontado como um dos organizadores do evento, estava tentando ‘escorraçar’ ele e outros influencers.

Secretária da Sepromi, Ângela Guimarães – Foto Pedro Moraes

“Todo ato de racismo merece nosso extremo repúdio. Nós repudiamos aquele acontecido e nos colocamos à disposição da organização para acompanhar aí as medidas. Eles já tiveram, tomaram medidas, afastaram, demitiram o acusado de racismo e nós trabalhamos em duas vertentes. Uma vertente punitiva que é esta de incentivar denuncias de fazer um trabalho no nosso Centro de Referência Nelson Mandela de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa. Nós temos uma equipe multidisciplinar formada por advogadas, psicólogas, assistentes sociais que acolhem as pessoas vítimas de racismo, de intolerância religiosa e dão todas as orientações para que aquela denúncia prossiga no âmbito, na esfera criminal, mas que também seja feito um acolhimento psicológico, um acolhimento pelas assistentes sociais em caso de demandar outros serviços mais específicos e mais complexos. Então a gente trabalha nesse viés. Nós coordenamos uma rede de combate ao racismo e intolerância religiosa onde o Sistema de Justiça faz parte, Universidades, os Conselhos de Direitos, Movimentos Populares que exatamente para evitar que estes casos de racismo recaiam na impunidade. Então a gente tem essa articulação com diversos órgãos. Essa é uma das dimensões que nós atuamos muito fortemente. Nesse ano, mais de cem denúncias de racismo já chegaram ao nosso centro de referência acontecendo em diversos espaços da Bahia. A gente tem tanto nos deslocados com nossa equipe pra acompanhar tanto articulado com instituições locais pra que de fato acolham e façam o devido registro como racismo ou como intolerância religiosa. Porque a gente também ainda tem essa dificuldade. Muitas vezes são desviados no caminho o propósito por que sabem que as penas, inclusive a pena de injuria racial recentemente foi equiparada as penas de racismo”, disse.

“Nós atuamos também numa perspectiva preventiva e educativa. Nós desempenhamos ao longo do ano uma série de campanhas informando o que é o crime de racismo? O que é o crime de injuria racial? Quais são as penas? Que tipo de ações podem ser caracterizadas como crime de racismo, de injuria? Quais são os instrumentos que as pessoas para denunciar? Como colher a prova? A importância de arregimentar testemunhas. Então nós trabalhamos muito fortemente nessa dimensão preventiva. Temos ido as escolas, temos ido a Conselhos Municipais, a órgãos municipais de gestão de igualdade racial, temos ido a eventos e seminários, a colóquios, a palestras justamente disseminando essa perspectiva preventiva porque na verdade a gente gostaria de não precisar ter que conviver com racismo. Mas a realidade é muito diferente. A gente ainda tem um país que mais de 80% das pessoas considera esse país racista. Então o país é de fato racista, os ganhos da população negra são muitos inferiores da população branca. Os espaços de poder ocupados também são quase que exclusivamente brancos. Essas interações sociais ainda são muito marcados esse paradigma. Paradigma numa crença infundada que existe seres humanos superiores e outros inferiores. Então a gente tem que continuar atuando. Já passamos por mais de 53 municípios ao longo desse ano de 2023. A nossa agenda de Novembro Negro por exemplo ela tá percorrendo desde comunidades rurais, quilombolas, indígenas até grandes cidades, Universidades, eventos de porte nacional e internacional, sempre nessa missão de combater o racismo, de enfrentar as consequências das discriminações e promover a igualdade racial”, concluiu a secretária. 

O inelegível

“A gente nunca teve um governo tão abertamente racista na nossa história como foi a era do governo do inelegível. O governo Bolsonaro, ele tinham pessoas que acreditavam no racismo, propagavam, defendiam, utilizavam as estruturas de governo a favor do racismo. São as teses que a extrema direita globalmente acredita. Então foi um passo atrás, foi um um governo de muito retrocesso com desmonte do Ministério de Política de Igualdade Racial, um desmontes de todas as políticas que beneficiavam a população negra com o argumento e a retórica permanente de enfrentamento ao outro ao diferente de uma retórica racista de desqualificação da população negra, dos povos indígenas, da população quilombola, dos povos de matrizes africanas, da população LGBT, das mulheres, dos pobres. Foi um governo que apresentou muito retrocesso e que está custando muito pro Brasil se reerguer novamente após esses quatro anos de destruição”. Eu considero sim que foi um governo racista, que precisa ser punido por defender essas teses, por abrigar formuladores dessas ideias, de utilizar as estruturas do estado pra difundir as práticas tão odiosas como são as práticas do racismo”, defendeu Ângela que também é cientista social.

Secretária de Promoção da Igualdade Racial, Ângela Guimarães – Foto Pedro Moraes

Governo inaugurou a primeira loja Afrocolab da Bahia, em Salvador, com 43 marcas baianas. Ângela contou sobre as ações da pasta voltadas para o empreendedorismo negro no estado.

Então a gente tem erguido uma série de instrumentos de fortalecimento da política estadual do empreendedorismo negro e de mulheres da qual a SEPROM é coordenadora. Nós acabamos de lançar a primeira loja do empreendedorismo negro, uma loja colaborativa que é a Afrocolab. Ela tá em pleno funcionamento desde a segunda-feira (06), no Salvador Shopping. A gente tem ali 43 empreendimentos liderados por pessoas negras, dos mais diversos tipos de produtos e serviços ali a disposição do público. Produtos que são produzidos de uma forma coletiva, solidária, que tem preços justos, que tem ali a sua dinâmica voltada ao fortalecimento e a retirada das condições de extrema vulnerabilidade daquele empreendedorismo. É uma parceria nossa com Setre e fica em um espaço de grande visibilidade, nos maiores centros comerciais da Bahia. Ao lado disso, nós também temos parceria no Bahia Mei, que é um programa na Setre voltado para qualificação permanente desses empreendedores e empreendedoras. Nós também lançamos em julho o nosso crediafro, que é um crédito específico voltado ao fortalecimento e o impulso ao empreendedorismo negro aqui no estado. Ele tem juros de um por cento ao mês. Ele pode ser adquirido no volume entre três mil até cinquenta mil reais. Ele tem uma cartela de dez milhões de reais em recursos disponíveis pra esse empreendedorismo negro esse ano e nós já vamos em breve assinar o primeiro contrato de empréstimo desse crediafro”, disse a secretária.

Loja Afrocolab, no Shopping Salvador – Foto Matheus Landim/GOVBA

Ângela se posicionou sobre a discussão em torno da apropriação cultura, que no Brasil, se tornou parte do debate racial quando pessoas brancas adotaram elementos específicos da cultura afro.

“Eu considero que o chamamento que nós fazemos é para que as pessoas brancas sejam aliadas da luta anti-racista. Porque muitas vezes pessoas se utilizam de símbolos e signos da nossa cultura, esvaziando de sentido. Então o cabelo crespo não  é só um cabelo crespo, um corte da moda, um desenho ondulado, uma cor bacana. Aquilo ali representa um signo de resistência. Há uma história até uma pessoa negra conseguir assumir seus Dreadlocks, seu cabelo crespo as suas tranças não é meramente por uma questão estética, mas até essa pessoa negra que vive no sistema que é racista, que lhe diz todo dia que você é feio, que você é incapaz, que você não pode, até ela assumir aquele formato estético também passa por um processo de assunção de consciência. Então o que a gente discute nesse tema da apropriação cultural, a crítica é a crítica ao esvaziamento do conteúdo. É a trança pela trança, o turbante pelo turbante, a redução do sentido que aquilo tem pra população negra. Então se essas pessoas brancas consideram que elas podem mergulhar na luta anti-racista, se ver a partir do seu lugar de privilégio e buscar atuar ao nosso lado, não à nossa frente liderando, esse debate de apropriação vai ter um lugar menor do que o que a gente precisa. O que a gente precisa na verdade é que as pessoas brancas assumam a sua parcela de responsabilidade no enfrentamento ao racismo”, disse.

A gestora da Sepromi do estado comentou sobre a polêmica envolvendo o famoso bolinho baiano, o acarajé, que se tornou patrimônio histórico e cultural do estado do Rio de Janeiro no dia 28 de setembro.

Acarajé – Divulgação/Acarajé da Cira

“Todos nós sabemos que o acarajé é parte intrínseca da cultura afro-baiana. Então é aqui que ele tem sua origem, é aqui que ele tem a sua presença cultural, a sua presença territorial marcante, não à toa que a baiana é o símbolo da baianidade, é o símbolo do nosso estado não é utilizada aí essa referência das mulheres negras na situação de pós escravismo, as ganhadeiras que foram pra rua. As primeiras empreendedoras a lutar pela sua sobrevivência, da sua família e da sua comunidade. Então eu considero que foi inapropriado o Rio de Janeiro querer se apropriar desse símbolo. A Bahia não tem dúvida que a baiana é um símbolo do estado da Bahia. É aqui que surge, é aqui que se referencia e eu acredito que daqui também se espalha, como outras manifestações culturais, como outras personas da nossa cultura, então o samba também nasce na Bahia e se espalha pro Rio e pro resto do Brasil. As religiões de matriz africana tem a sua também história, sua referência e daqui se espalham, a própria capoeira, mas a gente não tem dúvidas que a baiana é o símbolo explícito do nosso estado”, conclui a cientista social Ângela Guimarães.