Por Correio Braziliense – Foto Asís G. Ayerbe

Rosa Montero ficou extremamente feliz quando se deu conta, já na metade do processo de escrita de O perigo de estar lúcida, que era capaz de responder às perguntas que a atormentaram durante toda a infância. “Desde muito pequena, tenho me perguntado por que minha cabeça funciona de maneira diferente. E, também, desde muito pequena, porque comecei a escrever aos 5 anos, o que é comum entre os escritores, me perguntava por que preciso fazer isso, me trancar em um canto da minha casa, inventar mentiras, coisas que as outras meninas não precisavam fazer, certo?”, conta a escritora espanhola.

Por que escritores escrevem o que escrevem? Qual a relação entre criatividade e loucura? Qual a relação entre realidade e irrealidade, entre sonhos e o tangível? Todas essas perguntas sempre quicaram na cabeça de Rosa, que teve ataques de pânico dos 16 aos 30 anos, e são o ponto de partida para o livro.

Em O perigo de estar lúcida, que chega ao Brasil pela Todavia, Rosa faz um verdadeiro compilado das relações entre loucura, criatividade e escrita na história da literatura. Foram horas de pesquisas em memórias de grandes escritores, estudos de psicologia e neurociência, leituras de romances e outros gêneros. A autora mergulhou obsessivamente no tema para trazer as curiosidades narradas no livro, que tem também um bocado da experiências da própria Rosa. Para compreender isso, é preciso saber um pouco quem é Rosa Montero.

Jornalista, nascida em Madri, autora de mais de 27 livros, entre romances, ensaios e autoficção, ou um gênero indefinido entre a ficção e a biografia que ela mesma inventou, como gosta de dizer, Rosa Montero é um dos nomes mais proeminentes do jornalismo e da literatura espanhola contemporânea. Foi redatora-chefe do El País, no qual trabalha desde a fundação, em 1976, e para o qual ainda escreve, e colaboradora de jornais, como o The Guardian (Inglaterra), Clarín (Argentina), El Mercurio (Chile) e Libération (França).

A complexidade humana é o universo no qual transita a escrita da espanhola. Morte, vida, loucura, história, feminismo, política, sociedade, todas essas esferas nas quais o ser humano é protagonista são o material de pesquisa da autora, dona de uma voz, ao mesmo tempo, erudita, certeira, séria e tragicômica.

Criação singular

Impossível não dar risadas nervosas com as situações descritas em O perigo de estar lúcida. E é inútil tentar definir o gênero do livro. Segundo Rosa, é “um artefato literário”, “uma criação minha”. “O mais criativo em O perigo de estar lúcida é essa fórmula que criei, uma fórmula própria e especial que inventei”, avisa. É uma fórmula também presente em A louca da casa e A ridícula ideia de nunca mais te ver, um relato sensível e inteligente sobre o luto e a ausência imposta pela morte de seres amados.

Rosa avisa, no início do livro, estar plenamente ciente de que sua própria cabeça funciona de um jeito torto. Mas nessa disfunção, paradoxalmente, está a fonte da capacidade de criar ficções e de se debruçar obsessivamente sobre histórias e maneiras sedutoras de escrevê-las.

E Rosa não está só. De sua investigação meticulosa, a autora emergiu com uma lista nada tímida de nomes submetidos à mesma situação por causa de uma disfunção genética, fisiológica, comportamental ou seja lá como a ciência descreve os distúrbios da mente ou o simples fato de ser diferente. “Passei a vida inteira tentando entender por que escrevem aqueles que escrevem”, avisa Rosa, no segundo capítulo do livro. “Um dos motivos, que funciona com os romancistas e dramaturgos e sem dúvida também, dentro de outro ramo criativo, com atrizes e atores, é a possibilidade de que sejamos pessoas mais dissociadas que a média.”

Somente uma mente dissociativa, ela acredita, é capaz de passar horas, dias e meses inventando pessoas, lugares, situações e intrigas que nunca existiram e, não contente, colocar isso no papel com a expectativa de que os outros leiam. E a leitura é um elemento importante. Em um dos capítulos, Rosa investiga como a angústia causada pelos distúrbios mentais se apazigua assim que o escritor publica e, sobretudo, passa a ser lido. Charles Bukowski, Emmanuel Carrère, Ray Bradbury, Thomas Bernhard, todos passaram por isso. Os vícios também caíram nas investigações da espanhola. Aldous Huxley com o LSD, Ernest Hemingway com a bebida, Jean Cocteau com o ópio, Baudelaire e Balzac com o haxixe, e Júlio Verne com a cocaína: a criatividade pode passar assustadoramente pelas drogas, assim como pode ser, e sempre acontece, destruída por elas.

O perigo de estar lúcida é cheio de esquinas surpreendentes e parágrafos envolventes, mesmo quando Rosa traz curiosidades conhecidas da história da literatura. A maneira de narrar, como se estivesse sentada em seu sofá madrilenho papeando com o leitor em uma conversa pontuada por muito bom humor e algumas pitadas de imaginação, é tão viciante quanto os artifícios de Hemingway, Huxley ou Balzac. Mas é uma história pessoal o fio mais interessante dessa narrativa. Ao longo de todo o livro, Rosa vai e vem em um episódio pessoal que rendeu boas doses de medo, espanto e condescendência.

Durante mais de três décadas, uma mulher se fez passar pela autora e a assombrou ao marcar encontros, assinar dedicatórias de livros, enviar presentes nada banais e até mesmo preencher formulários em uma universidade americana como se fosse a escritora. A Outra, como é chamada pela autora, funciona na narrativa como espécie de fio que perpassa a loucura e dá um sentido especial às invenções de mundos perpetradas pelos escritores. Em entrevista ao Diversão&Arte, Rosa Montero conta um pouco sobre a experiência de pesquisar as conexões entre loucura e criatividade.

Entrevista//Rosa Montero

Literatura e loucura sempre tiveram uma ligação? O que a loucura agrega à literatura?

Sempre houve uma conexão, claro. A ideia de que há uma conexão entre a criatividade e a loucura é um tema básico na história da humanidade. Até o próprio Aristóteles se perguntava como era possível que todos os homens de mérito artístico tivessem um excesso de bile negra, pois na Grécia clássica acreditava-se que a depressão era causada por um excesso de bile negra. Ou seja, isso é algo que os seres humanos têm pensado desde sempre, que havia uma união, alguma conexão entre a criatividade e a loucura. O que a loucura acrescenta à literatura? Pois não acrescenta nada. O que chamamos de loucura, em primeiro lugar, é uma palavra muito pouco precisa. Normalmente, chamamos de loucura aos transtornos mentais graves, ou seja, à psicose, e a psicose não acrescenta nada à criatividade ou à literatura. Estar louco, ou seja, estar doente de uma psicose, não apenas não faz de você um artista, mas também o desfaz. Quando artistas caíram vítimas de uma doença mental grave, desfizeram-se como artistas. O que acontece é que partimos de uma construção ou conexão cerebral paralela semelhante, que tem pontos de contato. Então, Eric Candel, que foi Nobel de Medicina, disse que todo transtorno mental se origina de um mau cabeamento neurológico, ou seja, as conexões entre os neurônios estão malfeitas, há uma hiperconexão ou uma hipoconexão. Isso nos transtornos mentais e, na criatividade, a mente da pessoa criativa também está conectada de maneira diferente. E próxima a de pessoas que têm transtornos mentais, mas não é o mesmo cabeamento, certo? A única coisa que existe são certos paralelismos, digamos, no cabeamento neurológico.

Para você, qual o maior perigo da lucidez? E o que seria a lucidez?

No título, usei um verso de Emily Dickinson, uma poetisa americana que teve muitos problemas. Descobriu-se que foi violentada pelo pai, talvez também pelo irmão. Ela enfrentou muitos problemas psíquicos, como era de se esperar, problemas de desequilíbrio. Viveu os últimos 20 anos de vida trancada no quarto. Ela tem um poema lindo no qual fala da infância, de quando descobriu a poesia e como a poesia a salvou. Ela fala do perigo de estar lúcida e, para ela, o perigo de estar lúcida era esse mundo oficial de um pai violador. O perigo de estar lúcida, nesse sentido, é o perigo de se adaptar a uma falsa normalidade. Dizem que a normalidade são valores completamente convencionais. Não é que a normalidade reflita o que a maioria das pessoas é, mas que a normalidade é uma norma, uma obrigação de cumprir. As pessoas que não se sentem adaptadas a essa norma são lançadas ao inferno, por assim dizer. É uma normalidade que é uma obrigação de ser normal, que é mentira. A normalidade não existe, como digo no livro. Na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em 2018, fizeram uma pesquisa e concluíram que a normalidade não existe, é apenas a média estatística de todas as possíveis respostas humanas a um tema. Portanto, não deve haver uma única pessoa no mundo que se encaixe nessa média estatística em todos os seus parâmetros. Todos somos divergentes em algo. O que acontece é que escondemos essa divergência para tentar nos adaptar a essa normalidade mentirosa que nos castra, nos mutila, nos obriga a ser o que não somos. Esse é o perigo.

Acha que ter consciência da fragilidade mental mudou a forma como você encara o mundo e, sobretudo, a sua literatura?

Claro. Quando você tem um transtorno mental, obviamente vê o mundo de outra maneira. Na verdade, eu saí da realidade com um transtorno de pânico, que pode ser muito dissociativo. Tive o que chamam de efeito túnel. Tinha 16 anos, vivia com meus pais e estava na sala de jantar à noite, sozinha lá. Suponho que estava arrumando a mesa e, de repente, sem motivo aparente, sem que nada tivesse acontecido, a sala de jantar desapareceu do outro lado de um túnel negro, o que significa que eu saí do mundo. Naturalmente, isso te dá uma percepção completamente diferente das coisas. Sou grata por ter tido transtornos de pânico porque me ensinaram o que é o transtorno mental, que é uma realidade na vida de um terço da população mundial. Tornou-me muito mais empática e fez-me compreender muito melhor o ser humano. E, claro, tudo isso também interfere e influencia na maneira como se vive e na forma de escrever.

Quais seriam os seus fantasmas, fora os anões?

Bem, sobre fantasmas é muito difícil saber, mas eu tenho certeza de que tenho fantasmas na minha escrita que ainda não descobri, mas, por exemplo, descobri um par deles. Um deles é que meus personagens mostram uma tendência inquietante a perder partes de seus corpos, a ter mutilações, perdem dedos, perdem dentes, perdem braços, ou seja, têm uma tendência à mutilação que não entendo muito bem. E depois, outro dos fantasmas são as baleias, que aparecem várias vezes nos meus livros e que, para mim, é algo tremendamente maravilhoso, misterioso, que representa algo enorme e magnífico, mas que também não entendo muito bem.

As mulheres são descritas como loucas, de forma pejorativa, com mais frequência que os homens?

Sim, ainda acontece em todo o mundo, sem dúvida. Lembremos que há muitas áreas onde as mulheres não têm absolutamente nenhum direito, como na maioria dos países árabes e em muitas partes da África. E mesmo no Ocidente ainda há uma maior pressão do convencional, ou seja, quando falávamos antes do que custa sair da norma. As mulheres que tentavam sair de uma norma mais opressiva do que a dos homens ainda eram mais punidas por isso. Mas não só as mulheres, também os homossexuais, por exemplo, ou seja, todos que saíam da norma de uma forma mais radical eram mais punidos e mais considerados loucos.

Ser escritora é, de certa forma, uma loucura?

Não, de forma alguma. Eu não acredito que seja uma forma de loucura de jeito nenhum. Pelo contrário, acho que é uma maneira maravilhosa de estruturar a vida, de se consolidar e integrar na realidade mais profunda e mais plena. É, pelo contrário, a antítese da loucura.

Como não perder o “músculo narrativo”, para usar uma expressão dita por você em uma entrevista, e a imaginação ao escrever autoficção?

Bem, a autoficção é válida, e eu escrevi alguns livros nesse estilo. Em O perigo de estar lúcida uso um pouco de autoficção. Mas eu não acredito que seja a única coisa que um escritor deve escrever, e principalmente não é o que os críticos devem valorizar mais, parece que agora a autoficção está na moda e os críticos valorizam principalmente isso. Não nos esqueçamos de que o romance é esse grande voo imaginativo, essa criação de grandes metáforas, contos essenciais que nos explicam, ainda acredito que é a mais alta literatura.