por Débora Prado e Cairo Junqueira/Le Monde Diplomatique

Desde o início do governo de Jair Bolsonaro os governadores têm adotado maior ativismo no campo das relações internacionais, sobretudo na temática envolvendo as mudanças climáticas e a questão ambiental de maneira mais ampla sempre em contraposição à conduta adotada pelo governo federal.

Em artigo publicado no dia 13 de fevereiro na Folha de São Paulo, a professora Maria Hermínia Tavares apontava que governadores e prefeitos podem representar um importante dique de contenção a governos populistas. Na ocasião, a autora recordou que governadores, tais como João Dória e Flávio Dino “têm voz própria e alguns deles a usam de forma incisiva sempre que Bolsonaro ensaia alguma iniciativa mais desastrosa e danosa ao pluralismo democrático e aos direitos dos cidadãos.”

Desde o início do governo de Jair Bolsonaro os governadores têm adotado maior ativismo no campo das relações internacionais, sobretudo na temática envolvendo as mudanças climáticas e a questão ambiental de maneira mais ampla sempre em contraposição à conduta adotada pelo governo federal. O caso mais evidente aconteceu após a repercussão dos dados de desmatamento da Amazônia que levou à suspensão do Fundo Amazônia por parte dos principais doadores, Alemanha e Noruega.

Ao contrário de Bolsonaro que desqualificou os dados apresentados, minimizou o corte de orçamentos e reagiu agressivamente, os governadores realizaram viagens internacionais para tentar uma renegociação deste Fundo de forma direta e tomaram a dianteira no debate sobre as mudanças climáticas e a proteção da Amazônia em importantes fóruns multilaterais tais como a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida em dezembro, e a Conferência de Madri. Fizeram críticas públicas ao governo federal e criaram duas frentes de atuação importantes com o Consórcio do Nordeste e o Consórcio da Amazônia Legal.

O exemplo mais recente de ativismo internacional por parte dos governadores tomou forma após mais um dos erros diplomáticos cometidos pelo atual governo. Em postagem no Twitter, Eduardo Bolsonaro culpou a China pela Pandemia do Coronavírus, causando grande atrito com o Embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, o qual respondeu dizendo que o filho do presidente havia contraído “vírus mental” em Miami. Como consequência, Rui Costa, governador da Bahia, escreveu carta destinada ao Embaixador pedindo colaboração com o país asiático, sinalizando uma iniciativa do próprio Consórcio do Nordeste.

Bolsonaro durante videoconferência com governadores do Sudeste. (Marcos Corrêa/Agência Brasil)
Presidente Jair Bolsonaro durante videoconferência com governadores do Sudeste. (Marcos Corrêa/Agência Brasil)
Coronavírus

Além do âmbito internacional, a pandemia do coronavírus abriu outra frente de batalha no nível nacional. Enquanto Bolsonaro minimiza a Pandemia afirmando ser apenas uma “gripezinha” e questiona medidas de isolamento e restrições recomendadas por especialistas e pelo próprio ministro da saúde, os governadores (de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Maranhão e Bahia) tomaram a dianteira e adotaram medidas importantes como bloquear rodovias e impedir a entrada de ônibus interestaduais.

Wilson Witzel, governador do estado do Rio de Janeiro, foi um dos primeiros a fechar estradas e aeroportos. O governador subiu o tom nas críticas ao presidente ao classificar como passo de tartaruga a velocidade do Planalto em dar resposta à crise. João Doria, governador de São Paulo, também criticou o que ele considerou uma letargia do presidente no enfrentamento da pandemia tomando medidas mais restritas, decretando um estado de quarentena de 15 dias. O governador fez coro às falas de Witzel, destacando a falta de liderança do governo federal ao afirmar que “estamos fazendo aquilo que ele não faz: liderar o processo, a luta contra o coronavírus, estabelecer informações claras, não minimizar processos, compreender a importância de respaldo da informação científica, da área da medicina” .

O governo federal reagiu e criticou a medida adotada pelo governador. Bolsonaro afirmou que estas medidas seriam ainda mais danosas que o covid-19, reforçou que rodovias e estradas federais eram de competência federal e chegou a afirmar que “tem um governo de Estado que só faltou declarar independência do mesmo”. O Ministro da Justiça e Segurança, Sergio Moro, também criticou a limitação de voos internacionais pelos estados, ao afirmar que tais ações são restritas ao governo federal.

Competência federal e estadual

No dia 20 de março, buscando barrar as medidas adotadas pelos governos estaduais e municipais, reagiu às ações dos governadores ao editar uma medida provisória que estabeleceu como competência federal, e não dos estados, o fechamento de aeroportos e rodovias.  Mas, recuou quando no dia 23 de março transferiu a órgãos de vigilância estadual a competência para prever as condições técnicas para fechamento ou bloqueio de estradas. O STF decidiu também, no dia 24 de março, que governadores e prefeitos têm poderes para restringir a locomoção em estados e municípios.

Apesar de prometer liberação de recursos aos governadores para o enfrentamento da crise provocada pela pandemia, na terça-feira, dia 23 de março, o presidente fez pronunciamento em rede nacional atacando mais uma vez os governadores ao destacar que eles precisam abandonar o conceito de “terra arrasada” com a proibição de transporte e as medidas de quarentena. Ademais, voltou a criticar medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e reafirmou que se trata de uma “histeria” coletiva mobilizada pela mídia.

O discurso de Bolsonaro gerou perplexidade entre parlamentares e governadores que criticaram durante as falas do presidente.  Flávio Dino, governador do Maranhão, afirmou que “ele mesmo (Bolsonaro) deflagrou o seu próprio processo de impeachment”. Em resposta ao pronunciamento, o governador do Pará, Helder Barbalho, reafirmou seu compromisso com o combate à pandemia e considerou tímidas as medidas adotadas pelo governo federal. Com este discurso, Bolsonaro dobra a aposta e transfere aos governadores a responsabilidade de uma crise econômica para os estados. É provável que os governadores e prefeitos sofram mais pressões para pôr fim às políticas de quarentena.

Pano de fundo

Há dois panos de fundo nos embates recentes envolvendo o governo federal e os governadores, um de ordem internacional e outro interno, que explicam a situação e fazem pensar no cenário futuro. Internacionalmente, nos deparamos com um vácuo conjuntural envolvendo carência de uma agenda pragmática de política externa, o que diretamente impacta a diplomacia. Segundo o Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, atualmente a política externa brasileira apresenta quatro eixos: democracia, transformação econômica, soberania e valores; os quais, aglutinados, remetem-se ao conceito de “liberdade”. Tal “liberdade”, apresenta-se como o ideal fundador até mais importante que a própria vida, segundo o chanceler afirma. As palavras soam contraditórias e, na prática, o que se observa é uma política por vezes amadora, sem protagonismo, e marcada por trocas de farpas, a exemplo do caso chinês mostrado acima. Como consequência, é justamente em virtude do vácuo de poder deixado pelo governo federal que os chamados entes subnacionais federativos – municípios e estados – assumem seus protagonismos e, progressivamente, vão estabelecendo maiores contatos e agendas com o exterior.

Embora, por vezes, o governo federal tente frear ou até mesmo rejeitar determinadas iniciativas, uma vez que a Constituição de 1988 não estabelece parâmetros legais e jurídicos para a atuação internacional dos seus entes sem o aval prévio da federação, cidades e estados assumem uma postura prática e pragmática que vai ao encontro de algumas diretrizes propostas por líderes globais. Foi o caso da aproximação de governadores do nordeste com autoridades europeias, assim como o contato com o embaixador chinês.

Já internamente, o que está em jogo é o modelo federalista brasileiro. Isso implica que há certas questões que são direcionadas rumo aos municípios e estados, mas outras ficam centralizadas na própria União. Um desses imbróglios foi observado exatamente na Medida Provisória 926 assinada por Jair Bolsonaro a respeito da quarentena e do isolamento em razão da covid-19. Para alguns, houve desrespeito aos limites constitucionais do governo federal, mas para outros, incluindo o ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal (STF), a Medida Provisória não altera as competências próprias dos governadores. Para além da pandemia, o embate entre governo federal e governos subnacionais é mais ampla e inclui, por exemplo, a questão do Pacto Federativo que está em debate desde a campanha presidencial de 2018 e tomou uma proporção mais abrangente no último ano. Isso significa que está em debate alterar competências e modos de arrecadação de tributação por parte dos governos, uma vez que há centralização de recursos na esfera federal, o que gera margem de atuação política por parte de Bolsonaro. Em meio à atual conjuntura, essa questão alcança patamares ainda maiores justamente em virtude dos atritos analisados acima.

Assim, retomando o artigo de Maria Hermínia Tavares, em meio à inaptidão do governo federal para lidar com as crises, os governos subnacionais serão os últimos diques de contenção? Não há dúvidas de que, internacionalmente, municípios e governos estaduais continuarão a estabelecer uma agenda robusta e estimular contatos alhures. No âmbito interno, face à carência de uma liderança nacional, governos locais e estaduais vão aproveitar a ocasião para se afirmarem e estabelecerem determinadas políticas. No seu último e mais polêmico discurso, Bolsonaro afirmou em rede nacional que “Devemos sim voltar à normalidade”. Mas alguma vez existiu tal normalidade no atual governo? Para determinados governadores, não.

Débora Prado é professora do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI/IE/UFU) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Cairo Junqueira é professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS) e pesquisador da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual Paulista (UNESP/NEPPs).