Cartazes da campanha #MeuCorpoNãoÉPúblico, criado por publicitárias contra abusadores no transporte
Estuprada por um motorista da Uber na noite de domingo 27 em São Paulo, a escritora Clara Averbuck descartou o registro de um boletim de ocorrência contra o agressor, posteriormente excluído do aplicativo. “Não confio no sistema. Já fui mil vezes à delegacia. Já levei amiga, já levei desconhecida, já levei um monte de mulher. Já vi o tratamento que é dado”, disse.
Passado o choque inicial, o posicionamento quase que imediatamente abriu a caixa de Pandora de comentários tingidos de machismo e desconfiança: “Se ela está dizendo a verdade, por que, afinal, não foi denunciar?”
Dois dias depois, Cíntia Souza, de 23 anos, sofreu um abuso sexual em ônibus que trafegava pela Avenida Paulista. Diversos passageiros testemunharam quando Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, ejaculou no pescoço da vítima, que estava sentada e foi surpreendida pela agressão.
Novais quase foi linchado pelas testemunhas, e o caso teve grande repercussão na mídia. Ele foi preso em flagrante pelo crime de estupro, mas acabou solto depois que um juiz entendeu se tratar, na verdade, de importunação ofensiva ao pudor, contravenção prevista em lei de 1941 e que não prevê pena de reclusão, apenas o pagamento de multa – em contos de réis. “Eu estou me sentindo um lixo”, disse Souza em entrevista à rádio Jovem Pan.
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Como acontece com a maior parte dos casos relacionados à violência de gênero, a subnotificação do crime de estupro e violência sexual são epidêmicas no Brasil, estimulada, entre outros fatores, pela falta de preparo das autoridades em acolher as vítimas e pela sensação de que a vexatória peregrinação em delegacias e tribunais, no fim das contas, acabará em impunidade. Há, ainda, o medo, a vergonha e, muitas vezes, o sentimento de culpa.
“Já ouvi casos em que a vítima relatou um abuso sofrido no campus da universidade após ter bebido. O delegado disse a ela: ‘isso não é estupro, isso é sexo arrependido’”, conta a juíza Tatiane Moreira Lima, da Vara de Violência Doméstica do Butantã, à frente de um projeto de combate ao abuso sexual no transporte público.
Desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), o projeto será lançado em outubro e vai oferecer uma espécie de curso de reflexão sobre machismo e masculinidade a homens que tenham sido flagrados em situações de abuso. “A nossa campanha tem três eixos: primeiro, fazer com que a vítima denuncie; segundo, que o agressor seja responsabilizado; e terceiro, que a sociedade se mobilize em torno dessa causa.”
Em uma triste coincidência, a campanha “Juntos podemos parar o abuso sexual nos transportes” veio à luz no mesmo dia em que Cíntia Souza foi abusada. “Vejo o caso como emblemático e importante para que nós enfrentemos a questão da violência no transporte coletivo”, afirma a diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo.
A responsabilização adequada do abusador tem sido, no entanto, o maior desafio. Para o juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto, que rejeitou o pedido de prisão preventiva contra Novais, apresentado pela delegada Denise do Prado, do 78º DP (Jardins), o caso no ônibus não foi estupro. “Entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça”, afirmou Souza Neto em sua decisão, citando o que diz o artigo 213 do Código Penal, sobre o crime de estupro.
Mas o que, afinal, vem a ser violência contra a mulher?
Para a advogada criminal e procuradora aposentada da Justiça de São Paulo, Luiza Eluf Nagib, o tratamento dado pelo juiz no caso é equivocada e inaceitável. “Só um juiz muito fora da realidade para considerar que não houve violência”, afirmou.
“Ejacular no rosto de alguém contra a vontade da pessoa, de forma abrupta, dentro de um coletivo, é de extrema violência. É estupro. Não é mera importunação ao pudor, que tem pena de multa. Na delegacia, o ato foi enquadrado como estupro. Já o juiz desclassificou para contravenção. Não é possível aceitar esse entendimento”, criticou a autora do livro A Paixão no Banco dos Réus, que trata de crimes de feminicídio.
O promotor Marcio Takeshi Nakada, representante do Ministério Público do Estado, também havia se manifestado pelo relaxamento do flagrante. “Eu me pergunto: será que eles acham que as mulheres não merecem respeito?”, questiona Nagib.
Para evitar o limbo jurídico, a advogada defende outra punição para casos como o da Avenida Paulista, intermediário entre o assédio sexual e o estupro. “Fiz recentemente essa sugestão ao Senado Federal quando participei da comissão de reforma do Código Penal”, disse Nagib. Ela sugere que o novo crime seja denominado “molestação sexual”.
Mesmo entendimento tem a juíza Tatiane Moreira Lima. “Precisamos pressionar os órgãos legislativos para que se crie um tipo penal intermediário. O que a gente tem hoje ou é nada, como a importunação ofensiva ao pudor, ou é o estupro, que começa com uma pena de reclusão altíssima, estigmatiza a pessoa para o resto da vida e cria caos social. Não é isso que a gente quer. A gente quer que o homem receba uma punição justa. Isso é Justiça.”
Para a juíza Teresa Cristina Cabral Santana, titular da 2ª Vara Criminal de Santo André, o primeiro passo é investir em ações que possam coibir esse tipo de comportamento. “Não podemos deixar a situação como está, porque é algo que acontece com muita frequência”, afirma Santana. A responsabilização criminal de quem tem esse tipo de conduta só vai acontecer se a gente conseguir olhar para o nosso ordenamento jurídico de uma maneira que não gere violência de gênero”, completa a magistrada.
Vítima de abuso sexual no transporte público, a jornalista Caroline Apple, de 32 anos, não se surpreendeu com o desfecho do caso. Em 2015, ela estava em um vagão lotado do metrô paulistano quando um homem passou a se masturbar atrás dela. Ao sair do vagão e pisar na escada rolante, sentiu parte de sua calça esquentar e molhar com a ejaculação do agressor.
Caroline denunciou o caso à época, também amplamente divulgado pela imprensa. Mas, ainda na delegacia, a sensação de justiça começou a arrefecer: o boletim de ocorrência foi registrado como importunação ofensiva ao pudor.
“Quando aconteceu eu fiquei chocada. Poxa, se o delegado nem consegue registrar o caso como deveria ser registrado, de que adianta denunciar?”, questiona.
Apesar de considerar revoltante a decisão, Apple diz não acreditar que perseguir o magistrado seja o melhor caminho. “Não adianta pegar a figura dele e malhar. Os juízes são legalistas, mas a lei não está permitindo que esses caras fiquem presos. Se ele tivesse tido um entendimento diferente, isso seria questionado posteriormente”, opina. “Esse cara tem 17 passagens e não aprendeu nada. Toda vez que ele entra na delegacia e sai pela porta da frente, você está legitimando essa conduta, está dizendo para ele: pode fazer, não pega nada.”
Em coluna publicada no site de notícias jurídicas Justificando, a professora de Direito Penal Maíra Zapater afirma que o juiz Souza Neto foi machista em sua decisão. Doutora em Direitos Humanos, ela é bastante crítica ao sistema penitenciário brasileiro, que promove encarceramento em massa. Zapater entende, contudo, que Novais foi violento e deveria estar preso.
“Esse caso me parece um caso clássico, que a gente daria em aula de decretação de prisão preventiva se tivesse sido reconhecido o tipo penal do estupro”, disse. “O problema é que fica muito difícil não vislumbrar o machismo nessa decisão quando o juiz coloca textualmente que a surpresa da ejaculação no pescoço da moça não é violência. Como que isso não é uma violência?”
“Temos medo”
Diego Ferreira de Novais tem uma ficha extensa de delitos sexuais. Levantamento realizado pelo jornal “Agora São Paulo” com dados da Polícia Civil revela que Novais foi detido 16 vezes por estupro, ato obsceno ou importunação ofensiva ao pudor. Dos registros, oito datam de menos de um ano e cinco ocorreram em 2017.
O primeiro episódio ocorreu há oito anos, em um ônibus na Lapa. O modus operandi costuma ser o mesmo: se aproxima de mulheres em coletivos e mostra ou encosta o pênis na vítima.
Quando o caso de Diego veio a tona, muitas mulheres passaram a compartilhar nas redes sociais as estratégias cotidianas para tentar escapar dos abusos.
“A gente anda encolhida no metrô. A gente desce rapidinho do ônibus. E, às vezes, a gente até desce um ponto antes ou depois porque está encanada com algum cara que parece estar ‘encarando’. Também ficamos boladas quando o taxista puxa papo e olha para a gente pelo espelhinho do retrovisor. Pode não ser nada? Pode. Mas a gente não vai apostar porque temos medo. Muito medo”, escreveu uma delas no Facebook. Um grupo de publicitárias também reagiu com a campanha #MeuCorpoNãoÉPúblico, criando cartazes de protesto contra a situação.
Uma pesquisa divulgada pela ActionAid em junho de 2016 coloca em números a sensação de insegurança experimentada por mulheres em todo o Brasil todo: 86% das entrevistadas já sofreram abuso em público em suas cidades.
Em 2015, o Datafolha revelou que é no transporte público que as mulheres estão mais vulneráveis a assédios e abusos sexuais: 35% das entrevistadas disseram ter sido vítimas em ônibus ou trens, superando a rua, a balada, o trabalho e a escola ou a faculdade. Nos coletivos, 22% disseram ter sofrido abuso físico, 8% verbal e 4% ambos.
No ensaio “Uma breve história do silêncio”, publicado no livro “A mãe de todas as perguntas” (Cia das Letras), a historiadora feminista Rebecca Solnit faz uma reflexão sobre os motivos que levam casos como esses a ficarem escondidos. “O tratamento dado às vítimas e a tolerância generalizada diante de uma epidemia de violência ensinam às mulheres que elas têm pouco valor, que erguer a voz pode resultar em maiores punições, que o silêncio pode ser uma estratégia de sobrevivência melhor”, observa.
Para Jacira Melo, do Patrícia Galvão, a sociedade precisa enfrentar a “construção cultural de violência contra as mulheres”. “Homens e garotos, de todas as idades e classes sociais, se sentem autorizados a cometer violências sexuais no transporte público neste País. É disso que estamos falando. Precisamos de uma mudança cultural muito séria.”